O tema das viagens veio à baila, nas “Conversas do Confinamento”*, por diversas vezes… mas com a Andreia Castro** era condição sine qua non. É médica e bloguer de viagens do Me Across The World. Completamente viciada em viagens, acumula experiências de viagens de lazer, mas também de voluntariado proporcionadas pela sua experiência e profissão. Já viajou muito sozinha; fez couchsurfing, mochilão nas Américas do centro e sul…. e trabalhou num cruzeiro nas Caraíbas.
*O que são as “Conversas do Confinamento”? Perante um novo confinamento geral, em Portugal, iniciado a 15 de janeiro de 2021, decidi começar uma série de entrevistas, de forma a dar a conhecer o trabalho de muitas mulheres, em várias áreas, mas sobretudo no trabalho em prol do outro, na saúde, sexualidade, no desenvolvimento pessoal, no auto-conhecimento e nas viagens, claro!
Entrevistas que trouxessem conhecimento e inspiração durante todo o confinamento.
Essas entrevistas foram o primeiro passo para criar o site Mulheres em Viagem, que é um site irmão do Viaje Comigo.
Mulheres em Viagem… porque a vida é uma viagem!
E quem sou eu? Sou a Susana Ribeiro, jornalista, comunicadora, viajante e fundadora do site de viagens Viaje Comigo e do Mulheres em Viagem. E a entrevistadora das “Conversas do Confinamento”.
Sejam bem-vind@s ao Mulheres em Viagem.pt – uma Comunidade de e para Mulheres Extraordinárias… como Tu!
**Quem é Andreia Castro?
Sou médica de profissão e viajante de coração.
Em 2017 tomei a opção de viajar sem data de regresso, tendo em 2018 passado cerca de 10 meses no estrangeiro.
Da minha experiência de viagens contam-se mais de 65 países visitados, voluntariado em S. Tomé, no Príncipe e no Líbano, 5 meses de mochilão pelo Hawaii e América do Sul e 3 meses a trabalhar a bordo de um cruzeiro de luxo nas Caraíbas.
A sede de viver e partilhar o mundo tal como o conheço fez nascer o blog de viagens “Me across the World“.
Para além da actividade médica em Portugal, sou responsável de projecto numa start-up americana, fundei a “Consulta do Viajante Online®” e organizo workshops de preparação de viajantes para as suas próximas aventuras, estando cada vez mais ligada ao trabalho remoto.
Viajante antes de ser médica, vivo com as memórias no bolso, o passaporte na mão e sempre com a próxima viagem marcada.
ENTREVISTA A ANDREIA CASTRO
SR – Olá, sejam bem-vindos a mais uma das Conversas do Confinamento. Hoje, tenho aqui a Andreia Castro, é médica e travel blogger, e quase não dormiu para estar aqui nesta entrevista. Muito obrigada Andreia, por teres aceite a conversa, o desafio de estares aqui na entrevista.
Andreia Castro (AC) – Olá, obrigada. Ainda estávamos aqui em risadas nos momentos anteriores, mas obrigada pelo convite. Temos muito que falar, não é?
Susana Ribeiro (SR) – É! Nós nunca nos conhecemos pessoalmente, mas seguimo-nos uma à oura e fartamo-nos de falar nas redes sociais e tudo, mas eu gostava de conhecer um bocadinho mais por ti. Portanto, eu sei que tu és médica e – aliás, houve uma altura que já me safaste aí de um grande embróglio de viagem
AC – Ainda do Convid, não foi?
SR – Sim, bastante antes.
AC – Já foi do século passado. Ehehe!
SR – Tu és médica, onde estás a trabalhar agora?
AC – A minha formação é como médica de família e até 2017 tive num Centro de Saúde, apesar de sempre ter feito urgência, em simultâneo. Comecei por urgência pediátrica, depois passei um bocado para a urgência de adultos e progressivamente fui entrando no circuito privado. Nesta caso no Hospital da Luz e na unidade onde eu trabalho vemos crianças e adultos nessa urgência. É um mix. Agora com a pandemia não, mas até a pandemia começar víamos tanto adultos como crianças. E em 2017 quando decidir dar, assim, o grito do Ipiranga e viajar pelo mundo também…
SR – Também vamos já falar dessa parte também…
AC – … desvinculei-me. Saí do SNS. Não por não gostar do meu trabalho. Porque eu até estava com uma lista fabulosa, que era malta que nunca tinha tido médico e então absorviam aquilo que era transmitido. E a relação era ótima. Não foi por aí. Eu tinha uma lista muito boa. Mas conseguia ter apenas 20 dias de férias por ano… sobretudo quando eu queria viajar muito e queria ver coisas, percebes. Não dava. E na altura despedi-me e desde então trabalho presencialmente só no circuito do Hospital da Luz e depois trabalho muito por online. Tento cada vez mais ser remota. O remoto, neste momento, é em casa. Não dá para fazer muito mais, mas metade da minha atividade profissional já é completamente online.
SR – Porque tu fazes também a consulta do viajante, online precisamente, apoias as pessoas para destinos mais complicados e têm de tomar vacinas e levar um certo tipo de medicação, onde podem estar sujeitos a outras coisas, não é? E fazes esse serviço online… aliás, é uma coisa que costuma ter difícil marcação…
AC – Na verdade, já fazia isto antes da pandemia começar. Portanto, o serviço é precisamente a mesma coisa que fazemos no atendimento presencial. E eu consigo fazer uma estratificação mais ou menos do que vai ser necessário com base no questionário que as pessoas preenchem previamente. Se houver algum caso pontualmente que não dê para ser feito no serviço online, eu logo – antes de qualquer consulta online começar – encaminho devidamente para uma consulta presencial, porque pode ter de fazer uma análise, pode ter de fazer qualquer coisa. E, portanto, já é uma atividade que eu fazia desde 2019, obviamente com tudo (a pandemia) ficou um bocadinho suspensa, embora já vá mexendo novamente. As pessoas já começam a reacordar por assim dizer. E mesmo durante a pandemia consegui um cargo numa empresa americana e, portanto, estou também a desenvolver um projeto de uma seguradora para nómadas digitais e para viajantes e acabo por ter este terceiro trabalho e o quarto é o das redes sociais. É um bocadinho de cada coisa, mas tudo no âmbito das viagens.
Susana Ribeiro – E eu costumo dizer que, as redes sociais, cada uma delas é um emprego, por isso, vais para aí para 10.
Andreia Castro – É um trabalho de casa, sem dúvida. Portanto, eu percebo perfeitamente quando há malta que se dedica a 100% à parte das redes sociais porque é um investimento de tempo e um consumo de manhã à noite, realmente tem de se abdicar de muita coisa. Só quem não faz é que não compreende, não é?
SR – E como é que surgiram as viagens na tia vida?
AC – Surgiram muito cedo porque os meus pais sempre me levaram muito cedo para todo o lado. Eram aquele casal que não deixava os filhos em casa. E eu era filha única. Fui filha única até aos 10 anos, até à minha irmã nascer. E portanto, eles sempre me levaram com eles. E quando tu começas a viajar muito nova, começas logo a ter os horizontes muito abertos. Aquilo começa a moldar a tua personalidade. Com oito anos, já tinha feito a Europa toda de carro… a “Europa toda”… até à Alemanha, pronto. Fiz metade do percurso. Mas fizemos o circuito de carro e ficamos sempre em parque de campismo. Nunca ficamos em hotéis ao longo de um mês inteiro. Isto numa altura em que não existiam as tendas da Queshua. Que são aquelas, que é só atirar ao ar e se montam. Não! Estamos a falar dos velhinhos iglos, que tu tinhas que montar aquilo com estacas, e etc. Que dava imenso trabalho.
SR- E quando faltava uma estaca?
AC – Ias roubar ao vizinho. Não eu era muito inocente aos oito anos, não fazia essas coisas.
SR – Era o cabo dos trabalhos quando faltava uma estaca.
AC – Eu lembro-me de os meus pais a montarem a tenda, em França, numa chuvada. O chão está super enlameado e eles a tentarem por a tenda o mais depressa possível, porque estava tudo a ficar encharcado. Não era como agora. Era ainda uma maior aventura. Não havia internet como há agora, não havia GoogleMaps. Não havia nada disso. Tínhamos um mapa (de papel) grande e íamos acompanhando as estradas no mapa.
SR – Que giro, que aventura!
AC – Depois com 13 anos fiz um intercâmbio para o Japão, com uma família japonesa. Sou originária de Sintra e Sintra tem um protocolo de intercâmbio com Omura, que é uma das primeiras cidades onde os portugueses foram desembarcar na altura dos Descobrimentos. Portanto, fizemos a introdução de muitas coisas – como a espingarda, pronto não é a melhor… mas é uma delas – no Japão e Omura ficou como uma cidade irmã de Sintra e, portanto, houve um período (não se continua a existir ou não) em que havia uma Exchange de alunos. Iam 15 alunos de escolas públicas para lá e depois vinham 15 alunos de escolas públicas para as nossas casas. Tive esta experiência com 13 anos que também é algo… WOW!
SR – Quanto tempo é que foste
AC – Fui 15 dias. Mas fui numa altura da minha vida que tinha 13 anos e era a mais nova desse grupo e era completamente vidrada em animação japonesa. Foi tipo ir à Disney. Foi um deslumbramento total de tu veres o que vias nos bonecos animados a concretizar-se à tua frente, tal e qual.
Depois fiz Erasmus com 21 e as coisas mudaram muito. Por ter viajado muito com os meus pais – e os meus pais sempre foram muito protecionistas e muito pouco facilitadores de eu abrir as asas sozinha – no ano em que fiz Erasmus começo finalmente a saber o que é um hostel, a fazer uma marcação pelo Booking. Apanhar o comboio para ir de Paris até Londres, ou até ir ali ao lado à Bélgica
SR – Que idade tens agora, Andreia?
AC – 35… isto foi quando eu tinha 21. Mas, a partir daí começou a abrir-se um mundo que eu desconhecia e tive a fase de marcar viagens com amigos. Depois, os amigos casam ou juntam-se… passei para a fase e tentei as viagens com agencias de aventura. Fiz duas ou três viagens com agencias mais conhecidas…
SR – Com grupo?
AC – Fui para Madagáscar; fui para Nicarágua, El Salvador e Guatemala; e ainda fiz uma viagem mais curtinha, mais focada em fotografia, em Itália, para a zona da Toscana. De repente pensei assim: vou viajar sozinha. Não arranjo companhia, quero fazer viagens diferentes; ainda não é isto que me satisfaz. Vou viajar sozinha. E em 2017, depois de muita ponderação, decidi desvincular-me do SNS. E então as viagens sempre tiveram muito presentes. No fundo, a minha parte profissional e a minha parte pessoal sempre se encaminharam, para trabalharmos em conjunto nesse sentido. Foi desde sempre na verdade.
DE MOCHILA ÀS COSTAS
SR – Que giro! E tu fizeste um mochilão?…
AC – Fiz. Quando resolvi despedir-me o meu projeto era ir para a América do Sul, tipo… 6 meses, um ano, uma coisa assim à maluca. Quer dizer, quem nunca viajou sozinha… a minha experiência em viajar sozinha era Erasmus, em Paris, só que tu acordas e dormes todos os dias no mesmo sítio. E depois tinha estado um mês em Londres, num estágio, e tinha estado cinco dias na Eslovénia sozinha. Portanto, a minha experiência de verdade a viajar sozinha eram cinco dias na Eslovénia, não era mais nada. E, de repente, decidi ir para a América do Sul. A minha ideia foi começar pela Costa Rica porque achei que era arriscado, uma rapariga sozinha sem experiência, começar para a Colômbia . Então, pensei, bem vou começar um bocadinho mais acima até porque a Costa Rica é caro e eu não sei se um dia mais tarde tenho possibilidade de pagar uma viagem destas ou não, portanto vou já despachar a Costa Rica. Comprei um voo para San José, que é a capital da Costa Rica, achava eu, só que enganei-me e comprei San José Califórnia.
SR – Ahahah! Tenho uma amiga que é irlandesa, e tem um blogue muito conceituado na Irlanda e ela diz: “I am the worst travel blogger in the world”. Ela faz isso montes de vezes hoje em dia. Portanto, ela não tinha a desculpa (que tu tens) de ser a idade, de ser a primeira vez e não sei quê. Ela faz isso montes de vezes e muitas vezes vai para aeroportos que não são aqueles para onde ela tem de ir.
AC – Que vergonha. E quem se apercebeu daquilo foi o meu pai, nem fui eu. Eu tive a sorte de por acaso entrar num avião que tinha internet e o meu pai é que me diz que estava a ver o voo no flight radar e que estava a ir na horizontal para a Califórnia, portanto comprei o voo para uma cidade chamada San José, que é muito perto de San Francisco, só que nos Estados Unidos em vez de ser na Costa Rica. A minha sorte é que eu ia sem ninguém a viajar sozinha e não tinha ninguém à minha espera, não tinha data de regresso. Quando cheguei lá não tinha mochila… a minha mochila tinha ficado em Newark, na escala…
SR – Ainda por cima…!
AC – Fiquei ali 24 a 48 horas a pensar no que é que ia fazer e decidi ir para o Havai. Porque estava super perto, era super barato. Eu achei vou uma semana para o Algarve – nunca mais vou ter esta sorte – e em vez de uma semana estive lá dois meses. Aquilo é espetacular. Estive lá em quatro ilhas e adorei o Havai.
SR – Só estavas a viajar, não estavas a trabalhar?
AC – Trabalhei numa das ilhas, porque… eu fiz sempre couchsurfing no Havai. Mas numa das ilhas eu não estava a conseguir alojamento no norte da ilha, numa zona chamada Kona, e portanto aí trabalhava num hostel e fazia limpezas. Fazia mesmo serviço de housekeeping, casas de banho, cozinhas, espaços comuns, quartos…
SR – Era durante uma parte do dia e assim tinhas o resto do dia para as visitas.
AC – Em 4 dias poupei 200 dólares, que é muito dinheiro para quem está a viajar.
SR – Eles davam-te o alojamento…
AC – Em troca do meu trabalho. Era a única alternativa do alojamento e não queria estar a pagar os 200 dólares. Achava um balúrdio. Sobretudo, eram 50 dólares para ficares numa camarata de 8 pessoas. Era um roubo mesmo. Portanto, consegui ficar a trabalhar e tempo foi passando e chegamos a março e eu queria muito mesmo ir para a Patagónia. Era a minha cena – já falamos sobre isso – era o Chile! Tinha aquela coisa que queria ir para o Chile, queria fazer as Torres de Paine, e o W e whatever… então, em março, meti-me numa avião do Havai até Buenos Aires. Foram 3 voos, tipo 23 horas. Saiu-me os olhos da cara, porque eu comprei o voo numa segunda para me ir embora numa quarta-feira. Portanto, foi em1200 euros, um disparate horroroso, a maior despesa de todos os temos. Mas eu sabia que se não entrasse na América do Sul rapidamente, vinha o inverno e eu já não conseguia fazer aquilo. Se eu não chegasse lá naquela altura já só dali a seis meses é que eu conseguia repetir a oportunidade. Portanto, estive na Argentina e três meses na América do Sul… fiz Argentina, Chile, Brasil, Uruguai e Bolívia. Ficou o Peru e o Equador ainda por ver, que ainda não conheço.
SR – Sobre o couchsurfing, não se usa tanto mas existem algumas plataformas que divulgam isso. Tu tiveste sempre boas experiências?
AC – Tive. Achas que já não se usa tanto o couchsurfing?
SR – Não sei. Como há muitos hostels, agora, relativamente baratos, acho que não se usa tanto e também porque houve, lá está, às vezes a gente fica presa pela má notícia… 90% das vezes correr tudo muito bem, mas nós vamos sempre ver aqueles 10% e para nós mulheres existem ainda maiores riscos.
AC – Eu arrisquei-me um bocado. Porque eu só escolhia alojamentos em casa de homens, porque era a minha garantia de que eu ia ter uma resposta positiva. Eu como fazia tudo muito em cima da hora… Aqui fui um bocado jogadora. Nunca tive nenhuma má experiência, as coisas correram-se sempre bem e até te posso dar uns exemplos muito concretos de quão bem correram, mas o que eu fazia sempre era fazer pedidos de alojamento para casas de homens porque eu sabia que eles me iam responder. Portanto, havia sempre a hipótese de ficar em algum lado. E posso-te dizer que no Havai, fiquei em casa de um moço que vivia numa vivenda. Ele foi – na mesma semana em que eu fiquei, passados dois dias – foi visitar os pais a outra ilha, a Maui, então deixou-me a vivenda, o jipe, o frigorífico completamente cheio. Estive sozinha cinco, seis dias, com uma casa só para mim. Completamente à vontade. Foi super tranquilo e fui repetir a experiência em Buenos Aires. Fiquei com uns italianos que estavam lá a trabalhar e tinham alugado um apartamento. E não, nunca tive problemas. Na primeira vez, tive algum receio, até porque nunca tinha feito couchsurfing, nunca tinha pedido uma boleia sequer na minha vida, e o meu primeiro couchsurfer de todos… e isto é um bocado preconceituoso, e é, mas era um negrão enorme, tipo US Navy, daqueles do hiphop, com boné, com colar de ouro, cheio de estilo e quando ele me vai buscar às 10 da noite, ao sítio combinado, eu pensei assim, o que é que eu vou fazer à minha vida.
SR – Disseste logo “os meus rins não estão a funcionar bem”. Para não ficar sem rins, eheheh
AC – A verdade é que acabei por ir, porque ele já estava acompanhado por outra miúda que também estava a ficar lá, em cada dele, porque ele tinha um T3. E foi um indivíduo espetacular, mostrou-me imensa coisa. Ele trabalhava em Pearl Harbour. Portanto, ainda me levou a Pearl Harbour, para conhecer as instalações daquilo…
SR – Que máximo. Há montes de gente… é isto que eu também gosto que as pessoas percebarm: os 10% de más notícias que nós podemos ter, não faz com que… e há pessoas que verdadeiramente querem ter essa experiência de ter pessoas de outras culturas lá em casa. Às vezes é porque têm profissões muito exigentes, não conseguem viajar, e até a única forma de terem contacto com outras pessoas é recebê-las lá em casa e é porque gostam verdadeiramente disso.
AC – A parte das más experiências não é representativa do resto. Neste caso, ele próprio era uma pessoa que viajava bastante. Já tinha estado na Austrália, no Japão, porque é ali… do Havai para a Austrália e para o Japão é um tirinho, é tipo nós irmos à Grécia. Ele estava farto de viajar, e conheci imensa gente com ele e, hoje em dia, ainda conversamos. E passaram-se 13 anos e ainda mantenho o contacto com estas pessoas. Só posso dizer bem da experiência do couchsurfing.
SR – Depois também há isso, eles próprios terem essa experiência e quererem proporcionar isso a outras pessoas. Muito interessante.
AC – Acho que às vezes nem é tanto pela questão do dinheiro, porque há hostels, como tu dizes – e bem – muito acessíveis, hoje em dia…
SR – Sim, hoje em dia é incrível, podes ficar num dormitório por 10 euros.
AC – Mas, é uma experiência que um hostel não te vai oferecer.
SR – Sem dúvida. Ainda tiveste uma coisa que parecia aquela da troca de casas. Quer dizer tiveste direito a carro, frigorífico cheio e tudo.
AC – Também tens essa alternativa, que eu por acaso nunca experimentei. Que é o Homes Exchange, que é tu meteres a tua casa numa plataforma e outras pessoas têm a casa delas e quando as pessoas fazem períodos de férias tu trocas de casas.
SR – Sim, exatamente. Eu, essa já estive quase para fazer mas depois não se proporcionou. Por acaso, também nunca fiz couchsurfing. Ou seja, já o fiz mas não através da plataformas, num amigo de um amigo ou numa amiga, e fico lá em casa. Aliás, houve uma vez, que fui para Amesterdão na passagem de ano, e fiz dog sitting, mas eu conhecia a rapariga. Ou seja, por acaso o marido é português, ela vinha passar aqui o fim de ano, e eu andava à rasca para arranjar um sítio barato em Amesterdão – que não existe no fim de ano – e ela disse: ah por acaso dava-nos jeito de alguém que ficasse lá com o cão. E foi uma maravilha.
AC – Isso até tens outra plataforma do work away, que facilita esse tipo de coisas.
SR – Há mesmo uma dos animais, para ser babysitter dos animais, com os cães é mais complicado que tens de passear 2 a 3 vezes à rua com eles, mas há para gatos e tudo…
AC – Sim, mas arranjas alojamentos em Nova Iorque, em Manhattan, por exemplo. Que é uma coisa… pelo preço de estar a passear o cãozinho das vezes por dia, ficas no centro da cidade e poupas logo 600 euros.
SR – E depois também há outra coisas. Tu, por exemplo, foste trabalhar e muitos hostels proporcionam isso. Por exemplo, eu estive em Israel há dois anos e ns hostels onde eu ficava quase toda a gente que trabalhava na receção, estavam lá em troca de alojamento. Portanto, faziam horas… e eram de vários países, falavam várias línguas que dá jeito ter pessoas na receção assim. E estavam em troca de alojamento e ajudavam na cozinha, pequenos-almoços…
AC – Eu consegui fazer isso no Chile. Todo esse trabalho que acabaste de falar, acabei por fazer no Chile. Na zona do parque natural das Torres del Paine. Em troca de alojamento fazia isso tudo, no parque de campismo, eu levava o pessoal aos parques, pequenos-almoços… há muitas oportunidades hoje em dia.
SR – Há muita coisa para fazer, não é? Estive agora esta semana, a falar com uma amiga brasileira – conhecemo-nos na Índia – e ela está aqui na Europa e esteve numa quinta, de pessoal meio hippie, yoga e não sei quê – estou a dizer meio hippie porque foi exatamente a descrição que ela me fez, não sou eu que estou a pôr a etiqueta – e ela esteve lá a trabalhar, no campo, ou seja, de galochas o dia inteiro, e eles davam-lhe comida e dormida. No sul de França, acho eu. E ela estava maravilhada. Esteve lá um mês e tal assim. Há muita forma de viajar não é?…
AC – Não foste tu que foste para as vinhas?
SR – Sim, fui para as vindimas.
AC – Que eu adorava. É uma experiência giríssima que eu gostava de fazer.
SR – É engraçado que todos os anos… eu quando dizia às pessoas, este ano vou trabalhar para as vindimas. E as pessoas “ah eu também já fui um ano”. E eu: pois, eu vou todos os anos, mas é um dia para as vindimas. Porque há sempre uma quinta que convida os jornalistas, para ir passar lá um dia. Há dois anos até foi numa quinta no sul, não me lembro do nome, e até fizeram um vinho que foi pisado por nós.
AC – E vocês depois beberam o vinho.
SR – Bebemos, bebemos… passaram dois anos e eles mandaram. Isto é mesmo um trabalho bom (de marketing). Mas, este ano, devido a toda esta conjuntura e eu ter perdido o meu emprego como tour líder e do próprio site… quando as pessoas não estão à procura de viagens o site também vai abaixo. Foi o meu projeto nos últimos sete anos, foi tudo abaixo… E eu lembro-me de estar a visitar uma quinta no Douro e perguntar à enóloga se ela ainda tinha muita dificuldade, hoje em dia, de arranjar mão-de-obra. E ela disse “sim”. E eu pensei mão-de-obra profissional, e ela “não, normal”. Quer dizer que se eu viesse, mesmo não sabendo nada, e ela “sim”. Então eu disse “eu quero”.
AC – Susana, este ano, 2021, quando chegar à altura, adorava experimentar.
SR – A verdade é que eles precisam de gente que queira trabalhar. Esta é a mais pura das verdades. E não é só do vinho. Obviamente que eu tinha este sonho, e eu escolhi uma quinta no Douro, porque adoro, sou apaixonada pelo Douro. Toda a gente já sabe, à minha volta, quando disse isto às minhas amigas disseram “não acredito”, porque era o meu sonho. E quer dizer, fui trabalhar e estive lá 15 dias e fiz de tudo um bocadinho e havia dias que, depois do jantar, eu sºo queria era dormir. Fiquei com músculo e tudo de andar a carregar os caixotes.
AC – Acho super giro. Há experiências super giras. Sabes que agora eu faço vida em Oeiras e nós temos aqui as vinhas de Carcavelos. E eu desde que vim viver para Oeiras, com 25 anos, havia duas coisas que eu queria fazer, que era ir para as vinhas, precisamente, e ir assistir ao Coro de Santo Amaro de Oeiras. E estou aqui há 10 anos e nunca fui fazer nenhuma das coisas.
SR – Bem, a do Coro é muito específica
AC – Isto para dizer que, às vezes, nós temos coisas fabulosas à nossa volta e é mais fácil irmos para o outro lado do mundo metermo-nos numas vinhas do que Às vezes aproveitarmos as coisas cá.
SR – Verdade! Já tinha pensado mais em fazer isso lá fora do que aqui. Porque, lá está, estou sempre lá fora, ou muito mais lá fora, nos últimos anos, e era muito mais fácil programar estar lá fora e fazer as vindimas do que dizer assim “ah, eu em setembro vou estar cá e vou fazer as vindimas no Douro”. Mas entretanto a pandemia trouxe também essa possibilidade. E, sim, normalmente nestes sítios – não têm todos as condições que eu tive certamente e de toda a gente que estava lá para trabalhar – e eu bem vi agora quando estive a viver no Algarve, que vejo romenos, ucranianos, nas condições de trabalho que não são as mesmas, os sítios onde eles dormem, etc.
AC – Claro, proporcionaram-te uma experiência.
SR – Exatamente. E toda a gente que estava lá. Era muita gente de Trás-os-Montes também. Havia pessoas muito mais novas que estavam lá para ganharem o dinheiro das propinas que iam pagar na faculdade.
AC – Sim, porque até são diárias que até são relativamente bem pagas, não é?
SR – Eu acho que só quando tu estás lá a trabalhar é que vês que… é assim, até podem ser bem pagas, mas é o valor justo, porque é pesado. E não é só a parte de cortar a vinha, sabes, há o trabalho da adega…
SR – Mas sabes que se beberes um copinho antes de começares fica tudo mais leve de certeza. O segredo é esse.
AC – Umas sopas de cavalo cansado. Mas, depois tem a parte da adega, depois tens sempre de estar a lavar tudo. É assim, é muito intenso e é muita coisa, não é só a parte bonita de colher o cacho, meter, andarmos a cantar… que também o fazemos, e é uma parte muito engraçada, mas há muito trabalho. Eu fiz três pisas a pé, o vinho do Porto de 2020, foi todo pisado com estes pezinhos e outros.
AC – E é vinho que foi posto logo à venda?
SR – Não, está nas pipas e há-de sair mais tarde.
AC – Mas é muito giro.
SR – Se as pessoas se abrirem um bocadinho a fazerem coisas, a viverem coisas. Conseguem ter depois essas experiências todas.
E tiveste assim, como mulher viajantes, sozinha, algum dia em que tiveste assim mesmo medo?
AC – Não, enquanto mulher não. Tive receio pela minha integridade física, em duas situações apenas e não foi por ser mulher foi por ser parva, pura e simplesmente. Uma delas foi nas Torres de Paine, precisamente. Eu estava a caminhar para ver o nascer do sol projetado nas torres, em que já ia cansada e com o tempo muito limitado, ia a caminhar desde as 2 da manhã. Tinha feito 12 KM. Porque eu não consegui alojamento nos refúgios, tive de começar a andar muito cedo e muito carregada e foi muito extenuante. E portanto, no final, já muito perto do topo da montanha, eu não vi a última indicação que é para contornares ali uma zona e eu continuei a subir.
SR – Estavas a fazer sozinha?
AC – Tu acabas por fazer estes trilhos sozinha…
SR – Sim, essa minha amiga brasileira, que estava a falar, ela fez isso tudo sozinha.
AC – É, porque depois cada pessoas anda ao eu ritmo e não é justo andares mais depressa ou mais devagar e as pessoas terem de estar a acompanhar. Portanto, começas num grupinho e depois cada um vai ao seu ritmo e está sozinha. E aquilo também é uma experiência interior muito interessante e muito intensa. Porque mete o desgaste fisco e mete muito tempo que estás sozinha contigo própria. Aquilo é curativo, é terapêutico. Eu curei muitos traumas durante essa caminhada, nessa noite. E, depois, quando cheguei lá acima, líndissimo, vi o nascer do sol, cheguei 5 minutos antes. Só que depois a descer foi uma chatice, porque estava a descer numa montanha cuja superfície era toda em cascalho e gravilha, mas também tinha pedregulhos maiores do que eu. E, portanto, soltando-se alguma coisa eu deslizava por ali abaixo e com as pedras por cima de mim. Eu tive a noção que podia francamente ficar ali naquele dia, e a coisa podia ter corrido mal. Desci a montanha tipo aranha, de gatas, braços e pernas assim a descer… Aí tive muito medo. Havia pedras mesmo muito grandes e as coisas podiam ter resvalado.
E depois foi no Brasil, quando fui a uma favela do morro dos Dois Irmãos, se não estou em erro. Porque fiz o disparate de, em vez de ir de mota lá acima, que são os tais moto-táxis que são elementos que vivem dentro da favela, que te transportam até ao início do trilho, por exemplo. Eu e um chinês, que estava no meu hostel, mandamos vir um Uber e pedimos para nos deixar no tipo do trilho. E isso é uma coisa que nunca se deve fazer… Porque eles dizem logo: as janelas completamente abertas porque quem mora na favela, nomeadamente a malta ligada a negócios mais obscuros tem que saber quem é que vai. Tem de perceber se são turistas ou se são policias. E foi muito arriscado ir de Uber, porque tu entras em ruelas que não consegues ver o que está adiante e não consegues inverter o carro. Portanto, se alguém quisesse fazer uma emboscada para te assaltar, ali era o sítio perfeito.
Não foi enquanto mulher, foi porque se calhar nesses dois dias não fui perspicaz o suficiente para evitar correr estes riscos.
SR – É são coisas que nõs vamos aprendendo, não é? Aliás, no Guia que tenho para Mulheres Viajantes, uma das coisas é o que referiste agora. Porquê viajar sozinha? Uma delas (das razões para o fazer) é o que tu disseste, a gente faz uma introspeção tão grande quando estamos sozinhas… não é? Faz-nos pensar de forma diferente e nós… eu digo sempre, tudo o que nós passamos nestas viagens são ferramentas para nós utilizarmos no futuro e até no trabalho, tu deves notar – e de caminho vais-me falar da tua experiência de seres voluntária em Beirute – houve coisas nas viagens leva depois para a frente e que vão ser utéis para a frente. E é engraçado teres falado do Rio, que eu uma vez também no Rio de Janeiro, ia subir à Pedra Bonita. Fomos de noite para ver o nascer do sol lá em cima. Foi das coisas mais espectaulares
– eu adoro o Rio de Janeiro e quero muito voltar. O guia foi-me buscar ao hotel, só íamos os dois, e ele passava todos os (semáforos) vernelhos. E eu disse-lhe: Renato, estava vermelho, e ele disse, “Susana, você é louca? Aqui não se pára, no Rio. Só paras setiveres um carro à tua frente. De noite, tu não paras num sinal vermelho. E eu, ah tá bom! E depois eu subi à Pedra Bonita e aqui é tão bonito – parece que estamos quase no meio de uma floresta, até chegarmos lá acima – e nunca mais pensei nisso. Mas, foi engraçado porque eu pensei “ele tá louco”, não o conhecia de lado nenhum, “Ele não vê que está vermelho, porque é que está a acelerar?”. Ehehe!
AC – Só para tu veres esta questão da segurança, eu cheguei a comprar um gás pimenta no Havai, porque aquilo é território americano e os americanos vendem estas coisas. Entrei numa loja cheia de espingardas…
SR – Podias ter comprado uma taser, também!
AC – Então, comprei uma ceninha de spray pimenta e andei sempre com aquilo enfiado na mochila. Portanto, se alguém me assaltasse eu tinha de dizer “pera aí!”, tinha de abrir a mochila, abrir tudo e coisinhas e frasquinhos e etc, até encontrar o que me interessava. Portanto, senti-me sempre segura. Tem a ver também com o tipo de pessoa que és e ter alguma sensibilidade para reconhecer quem é que está à tua volta e não te meteres em confusões. Nunca fui miúda de me meter em bebedeiras, nem de experimentar cenas alternativas, nem nada. Só tenho pena de não ter feito o ritual xamânico, no Peru. Gostava de ter experimentado, mas de resto evito de risco que te podem por numa situação menos boa.
SR – Como disseste, os teus caminhos de viajante e de médica, cruzam-se montes de vezes, e tu o ano passado… já me perco com o tempo…
AC – Foi em Agosto…
EM BEIRUTE… DEPOIS DA EXPLOSÃO
SR – Foi em Agosto, depois daquela mega explosão em Beirute tu achaste que tinhas de arregaçar mangas e ir para lá ajudar e conseguiste envolver várias instituições, até, para levares medicamente que lhes faziam falta. Estiveste lá quanto tempo?
AC – Eu fui logo após a explosão. Eu comprei uma viagem e fui sozinha, assim à maluca, e estive lá uma semana.
SR – O que é que te fez ir? Porque há vários desastres…
AC – Já quando houve tsunamis, se calhar ficas naquela que podias ir ajudar, mas a minha formação como médica de família não me permite ajudar assim tanto, porque não sou intensivista, não sou cirurgiã…
SR – Porque é necessário ser dessas áreas?…
AC – Convém, porque se tu tens uma situação, do género, politraumatizados, tu precisas de ortopedistas. Tu tens uma situação com ferimentos graves tu precisas de cirurgiões, portanto são coisas muito específicas. No tsunami provavelmente precisavam de muita gente de medicina interna, para que conseguisse lidar com várias coisas em simultâneo. E o que aconteceu em Beirute foi claramente… tu vias que aquela explosão tinha feito ferimentos de estilhaços de vidro. Ia haver muita gente, com muitas ferias no corpo, ao mesmo tempo que precisavam era de ser limpas, desinfetadas e suturadas. E isso eu sabia fazer. Pela primeira vez, houve uma situação completamente inesperada. Eu acho que aquilo que mexeu connosco foi a intensidade de veres uma explosão daquelas a acontecer.
SR – Sim, eu acho que hoje em dia, no jornalismo lidamos muito om isto das coisas que nos são próximas, são as que vão mexer mais connosco. A proximidade da cultura…. quando existiram os atentados em Paris aquilo tocou-nos muito (mais) do que se tivesse sido em Israel ou na Palestina, porque infelizmente já é crónico vermos aquele tipo de situações noutros países. Então, tu sentiste essa proximidade? Tu já tinhas estado lá?
AC – Não, eu não tinha qualquer relação com o Líbano, eu não sou religiosa, eu não conhecia a história politica do Líbano, a única pessoa mais ou menos conhecida – e era das redes sociais, nunca tinha estado com ele pessoalmente – era o João Sousa, que continua a viver no Líbano, é fotojornalista. Eu estava em casa, no dia seguinte à explosão e eu tenho sempre a televisão ligada em canais de notícias e aquilo estava sempre a entrar. Hora a hora, a explosão e o que está a acontecer em Beirute ao longo de horas e horas.
E há uma altura em que tu pensas, o que está a ser feito e achei que podia ajudar e meti-me num avião e fui. Consegui arranjar um caixote com donativos. Eu tinha ido trabalhar nesse dia. Fui trabalhar, saí às quatro da tarde. Em Lisboa, arranjaram-me 13Kg de material e eu fui sem nada, sem organização nenhuma por detrás, sem números de telefone, sem conhecer ninguém no Líbano, da área médica ou enfermeiros, nada. E eu chegue lá e apresentava-nos “eu sou médica e acabei de chegar de Portugal para ajudar, o que posso fazer?”. E quando as pessoas estão numa situação de catástrofe, tudo o que é ajuda é bem-vinda. E eu acabei por encontrar uma associação que tinha um kit de sutura, que era a única coisa que eu precisava – e eu esqueci-me de levar isso. Eles tinham kits de sutura e eu comecei a ficar com eles. Portanto, suturei muita gente na rua e, depois, ao mesmo tempo, comecei uma campanha de recolha de donativos, que ao fim de uma semana fez 8 mil euros, só enquanto eu estava em Beirute. Depois aí criei outro problema que foi, comecei a ter de converter o dinheiro em bens materiais, sendo que lá, como é um dos países com maior taxa de inflação do mundo tu não consegues comprar nada, porque o dinheiro desaparece.
Eu gastei mil dólares em máscaras, tipo 100 máscaras, e não eram máscaras cirúrgicas, eram máscaras muito melhores. Mas, pronto, era muito dinheiro por pouca quantidade. Medicamentos a mesma coisa. Eu gastava 3 mil euros em medicamentos e eram caixas quase sem nada lá dentro. Depois acabei por voltar para Portugal, com algum dinheiro ainda, e pelo Instagram comecei a perguntar às pessoas o que devia fazer, se gastava o dinheiro lá todo, ou se vinha para Portugal e comprava as coisas aqui e arranjava forma de as levar para Beirute. Quando voltei para Portugal, logo no avião, comecei a mandar muitos e-mails. Comecei a tratar disto. Fiz um e-mail padrão, a pedir ajuda, a mostrar uma série de notícias que tinham saído naquela semana e os meus testemunhos na televisão e nos jornais, e em seis semanas – isto para sintetizar um bocado o assunto – entre o primeiro dia que fui a Beirute e a última vez (eu fui 3 vezes) eu consegui reunir 16 mil euros, em dinheiro, 3500Kg de material, com medicamentos e material hospitalar e o valor deste material era de mais de 250 mil euros. Para além de, numa primeira fase, houve uma associação que se ofereceu para pagar o envio de um contentor e que ia ser enviado por via marítima e depois tive um convite direto da Fundação Mirpuri – que está associada à HiFly, uma companhia de aviação portuguesa – para ir num voo humanitário para entregar os caixotes todos, que foram preparados nesta sala, um a um, e inventariados com uma série de voluntários e levarmos isto para Beirute. Isto em seis semanas.
SR – Incrível, muitos parabéns por isso. Eu sei que tu não queres os parabéns, mas deves recebê-los. E tu ainda continuas em contacto com algumas pessoas de lá?
AC – Sim, ainda hoje, estava a trocar mensagens com libaneses. Cá fiquei próxima de algumas pessoas da comunidade libanesa. Lá em Beirute continuo a manter o contacto com algumas pessoas que foi possível ajudar. Porque entretanto, estes donativos foram entregues a cinco ONG’s e seis hospitais, tudo pessoas que eu estive em contacto enquanto lá estive. Foi-se criando uma rede de contactos, a partir do momento em que eu cheguei, que consegui chegar a vários hospitais e consegui trocar mensagens com várias instituições diferentes. E em que eu dizia, eu tenho dinheiro, o que é que vocês precisam que eu vou comprar.
SR – Dinheiro não é problema. Eles devem ter pensado, quem é esta doida, porque é que ela está aqui a ajudar-nos. Sentiste isso?
AC – Ao princípio, num primeiro impacto, sentes, mas depois as pessoas percebem mesmo que é com boa intenção e que é real, quando tu começas a pegar nos telefonemas e… então quantas máscaras é que precisam. Eu tenho mil dólares. O que é que vocês precisam, o que é mais importante? O que é prioritário? E eles pediam-me desinfectante para o chão e máscaras. Entretanto, com esta coisa da Covid, que já é uma m..da, desculpem-me, mas é, acho que não há outra expressão para isto, fez com que numa catástrofe – como foi a explosão que dizimou, em termos estruturais, uma cidade inteira – esta malta em vez de estar a aplicar para comprar fios de sutura, compressas e betadine, estavam preocupados em comprar máscaras e desinfectantes para as superfícies. Eles se não estivessem protegidos enquanto profissionais também não podiam ajudar ninguém.
SR – Exatamente. Eles não tinham essas coisas básicas, para poderem sequer exercer.
AC – Porque o Líbano está em auto-gestão desde há muito tempo. Têm embargos sucessivos, têm uma grande inflação e portanto é tudo muito caro e chega em quantidades muito reduzidas. Ainda não começaram a ser vacinados no Líbano. E vai ser muito difícil as vacinas chegarem às pessoas, por exemplo.
SR – Chegamos à parte da conversa (sobre) a Covid. Que é eu ver na nota de rodapé “África 1700 casos”. É um continente inteiro. Eu espero que as pessoas saibam que houve países que pararam de fazer testes.
AC – A Tanzânia não tem estado a testar…
SR – Se calhar, 1700 são da África do Sul e mesmo assim não são todos… que até tem criticado imenso a dizer que a Europa e os Estados Unidos estão a ficar com as vacinas todas e toda a razão eles terão, certamente. Temos realidades muito diferentes e estes países onde as pessoas não têm condições mínimas de vida, não têm muitas vezes água, luz, tudo o resto, estar-lhes a dizer usem máscara, lavem as mãos, com que água devem perguntar eles . Deve ser muito difícil. E eles têm outras doenças há muitos anos, que estão lá e são um problema… Aliás, eu acho que esses países devem olhar e devem pensar “bolas, não há como uma pandemia atacar ali em cima, para rapidamente descobrirem uma vacina”. Da parte da Covid que gostaria de falar contigo – porque o resto já nos enche o dia a dia – é porque tu tens viajado na mesma. Eu também, no ano passado, fui para a Suécia e para o Dubai. Para deixarmos aqui, um bocadinho, a nossa experiência, de viajar no meio disto tudo. Fui à Suécia, mas fiquei em casa de uma amiga, só fiquei dois dias num hotel; que eu tenha percebido a única turista em Estocolmo naquela altura e ficavam muito surpreendidos e até me agradeciam “muito obrigada por teres vindo”. E depois fui ao Dubai, com o Turismo do Dubai. Foram as únicas viagens que fiz entretanto, desde março de 2020. Tu era suposto, hoje, estares lá fora.
AC – Eu fui à Islândia logo que abriu o primeiro confinamento.
SR – E eles já têm regras novas e já tens de fazer 5 dias de quarentena…
AC – E eu já estou quase vacinada! Portanto daqui a uma semaninha com a segunda vacina já posso entrar na Islândia sem problemas. Fui logo depois do primeiro desconfinamento. Alugamos uma autocaravana, dormimos todas as noites numa autocaravana. É um país com pouca densidade populacional, e com uma área muito grande, muito poucas pessoas, por isso o risco de tu apanhares o que quer que seja lá é muito diminuto. Foi a primeira viagem e correu extraordinariamente bem e senti-me um bocado na normalidade. Fui 11 dias em julho. Depois, fiz algo trabalho remoto a partir dos Açores. Acabei por estar duas semanas nos Açores, um bocadinho mais do que era suposto, mas que foi uma experiência lá que deu para sair daqui (de casa), pelo menos.
E agora fui ao Egito na passagem de ano. Aí já foi muito diferente, porque lá está, culturalmente não funciona como na Europa, encontras muita gente sem usar mascara, muita gente sem distanciamento social. Ai tive um bocado de receio de que as coisas pudessem correr mal, por muitos cuidados que eu tenha e das várias máscaras trocadas ao longo do dia. E agora devia estar em Moçambique, mas optamos por cancelar ainda antes do fecho das fronteiras, um bocado até pela questão da variante e não sermos um veículo de transmissão, e optamos por adiar a viagem. Eu pessoalmente o que tenho aplicado – e pode ser justificação ou não – estou na linha da frente desde o início. Desde que isto começou tenho contactos com doentes Covid dia e noite. E estive a fazer as contas e tenho 200 contactos por casa semana de trabalho, entre doentes, familiares, colegas de trabalho, ao fim do mês eu estou com mil pessoas diferentes. O que sinto quando vou viajar é que o meu grau de risco cai a pique.
SR – É uma boa teoria!
AC – É um boa teoria mas em larga escala não funciona assim. Tenho as coisas muito bem planeadas na minha cabeça em termos de proteção pessoal – não só porque sou médica a trabalhar na área Covid, como tenho esta vertente de medicina de viagens. Faz com que eu tenha naturalmente muitos cuidados.
SR – Sim, os voos também estão menos cheios, os aeroportos quase vazios…
AC – Aí a perceção que há é que o grau de risco, comparativamente, diminui bastante. Obviamente isto não pode ser generalizado para toda a gente.
SR – No Egito como é que funcionou?
AC – Tive de fazer teste PCR antes de ir. Continua a ser o melhor teste para os viajantes. Havia algum cuidado dentro dos hotéis. Mimei-me um bocadinho porque era o meu aniversário e a passagem de ano, e fiquei em hotéis melhores do que o que ficaria habitualmente. Aí tu tens algum cuidado, as pessoas usam máscara, e há nos quartos kits com gel, com desinfectante e máscaras, etc. Mas quando andas na rua é a rebaldaria total. Desde máscara de tecido que se calhar já não são lavadas há muito tempo Porque o Egito não é o pais mais higiénico do mundo. Até pessoas que não andam de máscara. Até não haver quáquer cuidado com a questão do distanciamento social. Há uma discrepância muito grande. E há algumas zonas – e nós tivemos de apanhar alguns transportes públicos – impõe algum receio de que possa apanhar a infeção.
SR – Muito bem. São cuidados a ter nas próximas viagens. Vamos lá a ver como isto vai melhorar nos próximos dias, para podermos aos bocadinhos voltarmos à nossa vida e as pessoas poderem trabalhar. Não estou a falar sequer do turismo, estou a falar de outras pessoas que não têm, sequer o direito ao trabalho neste momento.
AC – As coisas melhoram com a vacina. O problema da vacinação é que estamo-nos a proteger de desenvolver uma doença grave, mas não vai limitar aparentemente o grau de contágio. Quando se vai para este tipo de populações pouco vacinadas pode ser um problema. Deixa de ser um problema para nós – que estamos protegidos – mas enquanto não se perceber se isto limita a transmissão, podemos ser nós os causadores dos problemas, seja quando vamos fazer um voluntariado para África, seja um mochilão para a América do Sul ou para a Ásia. Vamos ainda ter aqui uns meses até perceber qual é o ponto de segurança a nível mundial que temos.
SR – Porque, queres tu dizer, podemos ser nós…
AC – Sermos nós os veículos de transmissão da infeção.
SR – Mas como fazemos o teste…
AC – O teste só te diz que no momento em que fizeste o teste ou não tens vírus ou não tens vírus o suficiente para positivares no teste. E podes ter um teste negativo na terça, e na quarta dar positivo. E nós no hospital temos isto todos os dias.
SR – Sem contacto com ninguém?
AC – Sim, porque tu já podias estar a incubação previamente. Portanto, quando fizeste a zaragatoa não tinhas carga viral suficiente (…) só quando eles se multiplicam em determinado número é que tu positivas no teste. Portanto, mesmo o teste PCR, para quem vai viajar, é muito útil porque já te permite criar, de certa forma, dois grupos, uns que positivam e que não vão (viajar) e outros que são negativos, mas dentro destes ainda há uma marinada muito grande, de pessoas que não têm a doença ou pessoas que têm e ainda não acusaram no teste.
SR – Isso é muito interessante, quer dizer que continuámos sem saber nada.
AC – Pois, mas já sabemos mais do que há um ano!
SR – Mau era! Não é?! :D
Olha, muito obrigada, Andreia, por tudo! Foi um prazer estar aqui contigo à conversa sobre tudo isto. Tudo muito interessante. Foi um prazer também conhecer-te mais um bocadinho. Sigam a Andreia no Me Across The World. No Instagram e no Facebook.
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AC – Vemo-nos nas vindimas!!