Projeto “52 Mulheres em 2025 – MEV, MulheresEmViagem.pt”. A história de uma mulher, por cada semana do ano. Durante o ano de 2025, o MulheresEmViagem.pt faz uma homenagem a Mulheres de todo o Mundo, de vários países, de várias áreas de formação, que se tornaram referências. Algumas já não estão entre nós, mas muitas outras ainda estão a transformar o nosso mundo, dia após dia, com o seu esforço e trabalho por um mundo mais igualitário! Por um mundo com mais referências femininas, sobretudo em áreas que nos estiveram vedadas durante séculos (milénios, por vezes…).
É essencial recuperar nomes que, durante demasiado tempo, ficaram na sombra. Jeanne Villepreux-Power (1794-1871) é um desses nomes. Uma mulher extraordinária, viajante por vocação e cientista por determinação, que mudou para sempre a forma como estudamos a vida marinha. Hoje é reconhecida como a inventora do aquário moderno e uma das primeiras biólogas marinhas da História: conquistas que adquirem ainda maior relevância quando lembramos que viveu num século em que a ciência estava praticamente fechada às mulheres.
O percurso de Jeanne Villepreux-Power é também uma viagem: começa no interior de França, passa por Paris, segue para Itália, conquista o Mediterrâneo e chega finalmente à Europa científica.
Infância humilde e uma curiosidade que nunca se calou
Jeanne Villepreux nasceu em 1794, na pequena localidade de Juillac, no centro de França. Cresceu numa família humilde e, desde cedo, enfrentou as limitações impostas às mulheres da época. Mas tinha algo que não podia ser restringido: uma curiosidade profunda e uma inteligência prática incomum.
Aos 18 anos, decide partir sozinha – literalmente a pé – para Paris. Esta viagem, quase épica para o seu tempo, demonstra desde os seus primeiros passos o que viria a ser a marca da sua vida: coragem, independência e a vontade de seguir o próprio caminho. Em Paris, trabalha como bordadeira e torna-se rapidamente reconhecida pela destreza excepcional. É esse talento que abre portas à sua ascensão social e futura vida científica.
De artesã a viajante científica
Em 1818, Jeanne muda-se para Messina, na Sicília, após casar com o comerciante inglês James Power. A ilha, no coração do Mediterrâneo, transforma-se no cenário ideal para a jovem mulher que já nutria um interesse crescente pelo mundo natural.
Messina era uma cidade onde se cruzavam mercadores, marinheiros, investigadores, naturalistas e exploradores. E foi nesse ambiente vibrante que Jeanne Villepreux-Power iniciou estudos (de forma autodidata) sobre fauna e flora, com foco crescente no mar Mediterrâneo, um dos ecossistemas mais ricos do mundo.
Enquanto as outras mulheres não podiam sair do espaço doméstico, Jeanne caminhava pela costa com cadernos de notas, recolhia amostras, observava criaturas marinhas e debatia ideias com naturalistas locais. Fazia isto num tempo em que a ciência era dominada por homens e a presença feminina era vista quase como intrusa. Mas Jeanne não pedia licença, avançava simplesmente.
O grande salto: quando Jeanne inventa o aquário
O maior obstáculo ao estudo de espécies marinhas vivas era simples: elas morriam rapidamente fora do seu ambiente natural. Jeanne percebeu que, para estudar comportamento, reprodução e desenvolvimento, precisava de criar um sistema que mantivesse essas espécies vivas por longos períodos. A solução que encontrou mudou a história da biologia: Jeanne Villepreux-Power inventou o aquário moderno!
Não apenas um recipiente com água, mas três modelos distintos e inovadores:
- Aquário de vidro para observação em interiores, permitindo estudo detalhado e contínuo.
- Aquário submerso, colocado no mar com grelhas que permitiam a renovação contínua da água.
- Aquário de contenção parcial, que permitia estudar espécies sem as retirar totalmente do habitat.
Estes três modelos foram revolucionários e tornaram possíveis estudos até então impensáveis. Jeanne, sem qualquer apoio institucional, fez aquilo que hoje chamaríamos de engenharia aplicada à biologia marinha.
O seu estudo mais famoso: o enigmático Argonauta argo
Na Sicília, Jeanne dedicou-se ao estudo do Argonauta argo, conhecido como “nautilo-papel” ou “argonauta”, um cefalópode envolto em mitos desde a Antiguidade. Até então acreditava-se, erradamente, que o argonauta roubava conchas a outros animais ou que as usava como barcos à superfície.
Através dos seus aquários, Jeanne observou o comportamento do animal durante meses e chegou a uma conclusão que abalou a comunidade científica: o argonauta produz realmente a sua própria concha!
Foi a primeira pessoa na história a documentar o processo de secreção, desmistificando séculos de erro científico. O estudo, publicado em 1839, ganhou destaque em toda a Europa e valeu-lhe o reconhecimento de sociedades científicas prestigiadas.
Jeanne Villepreux-Power tornou-se, assim, a primeira mulher membro da Academia de Ciências de Catânia e correspondeu-se com nomes importantes da ciência europeia, incluindo Charles Darwin e Richard Owen.
Uma vida marcada por viagens, estudo e resiliência
O trabalho de Jeanne continuou durante décadas. Estudou:
- comportamento de moluscos
- reprodução de diversas espécies marinhas
- registos de fenómenos geológicos, como o vulcão Etna
- desenvolvimento de técnicas de preservação de espécies
Mas a sua vida sofreu um momento devastador: em 1843, num naufrágio, quase toda a sua colecção científica, manuscritos, ilustrações e equipamentos perderam-se no mar.
Para qualquer investigador isto seria uma tragédia. Para uma mulher que tivera de lutar por cada espaço e cada reconhecimento, parecia definitivo. Mas Jeanne não desistiu. Continuou a escrever, a viajar e a estudar sempre com a mesma determinação.
Regresso a França e legado científico
Nos seus últimos anos, regressou a França e instalou-se em Juillac. Continuou a escrever artigos, a manter correspondência científica e a defender a importância da investigação marinha. Apesar de ter sido amplamente respeitada em vida, o seu nome desapareceu gradualmente das narrativas oficiais – algo infelizmente comum quando falamos de mulheres pioneiras.
Felizmente, o século XXI trouxe justiça. Hoje, Jeanne Villepreux-Power é reconhecida como:
- fundadora da biologia marinha experimental
- inventora do aquário moderno
- pioneira da ciência feita em viagem e no terreno
- referência para mulheres investigadoras e exploradoras
O poeta inglês Charles Kingsley chamou-lhe “a mãe da aquariologia”, título que resume com justiça a dimensão do seu legado.
Porque devemos lembrar Jeanne Villepreux-Power
Recuperar este nome não é apenas prestar homenagem, mas também é corrigir omissões e reforçar a importância das mulheres na história das viagens, da ciência e da exploração.
Na era atual, em que falamos tanto de conservação marinha e sustentabilidade, é mais do que justo recuperar o legado de quem inaugurou o estudo sistemático dos ecossistemas marinhos.
Jeanne Villepreux-Power é uma das mais importantes mulheres da história da Ciência, mas também uma viajante intrépida, criadora de caminhos e exemplo de resiliência. A sua vida mostra que a curiosidade e a coragem podem vencer fronteiras, e que o conhecimento nasce muitas vezes fora dos laboratórios, poderá nascer na viagem, na observação e na persistência.
O Mulheres em Viagem celebra figuras como ela: mulheres que exploraram o Mundo, mesmo quando o Mundo ainda não estava pronto para as receber. Jeanne deixou-nos muito mais do que o aquário: deixou-nos um método, um olhar e uma herança que continua viva em cada mergulho científico no oceano.

