Nesta sessão das “Conversas do Confinamento”* conhecemos Vânia Beliz**. É psicóloga, sexóloga e doutoranda – está a terminar agora – em Saúde Infantil. Tem livros publicados naquelas áreas, e participa em projetos de voluntariado, pelo mundo fora, de forma a lutar pela dignidade menstrual e empoderamento feminino. O que é isso? Nesta entrevista, conhece o trabalho de Vânia.
*O que são as “Conversas do Confinamento”? Perante um novo confinamento geral, em Portugal, iniciado a 15 de janeiro de 2021, decidi começar uma série de entrevistas, de forma a dar a conhecer o trabalho de muitas mulheres, em várias áreas, mas sobretudo no trabalho em prol do outro, na saúde, sexualidade, no desenvolvimento pessoal, no auto-conhecimento e nas viagens, claro!
Entrevistas que trouxessem conhecimento e inspiração durante todo o confinamento.
Essas entrevistas foram o primeiro passo para criar o site Mulheres em Viagem, que é um site irmão do Viaje Comigo.
Mulheres em Viagem… porque a vida é uma viagem!
E quem sou eu? Sou a Susana Ribeiro, jornalista, comunicadora, viajante e fundadora do site de viagens Viaje Comigo e do Mulheres em Viagem. E a entrevistadora das “Conversas do Confinamento”.
Sejam bem-vind@s ao Mulheres em Viagem.pt – uma Comunidade de e para Mulheres Extraordinárias… como Tu!
**Quem é Vânia Beliz?
Vânia Beliz nasceu em Lisboa, em 1978, e viveu no Algarve onde, em 2005, se licenciou em Psicóloga Clinica e da Saúde. Mestre em Sexologia e doutoranda em Estudos da Criança na especialidade de Saúde Infantil, na Universidade do Minho.
Apresentou durante três anos, no programa Curto-Circuito, da SIC Radical, uma rubrica para jovens sobre sexualidade. Na imprensa colabora com várias revistas e programas de televisão. Participa em vários projetos na área da educação sexual como são exemplo os projetos no âmbito dos Programas de Educação para a Saúde, (PES) e o Projeto de Educação Sexual “A viagem de Peludim”.
Consultora da CONTROL PORTUGAL e responsável pelo projeto nacional ControlTalk, serviço de esclarecimento através do whatsapp.
Autora do livro “Ponto Quê?” sobre a sexualidade feminina, co-autora de “A Viagem de Peludim”, obra dirigida às crianças e educadores e agora de “Chamar as coisas pelos nomes” dirigido às famílias sobre como e quando falar sobre sexualidade.
Responsável pelo projeto Adolescer que pretende sensibilizar públicos vulneráveis dos PALOP para a educação sexual com missões na Guiné Bissau e São Tomé.
Participa com frequência como oradora e formadora em vários eventos científicos, tendo inúmeras comunicações públicas em áreas como: Sexualidade Feminina, Sexualidade e Envelhecimento, Sexualidade na Deficiência, ou Educação Sexual. Página profissional
ENTREVISTA TRANSCRITA
Susana Ribeiro – Olá! Sejam bem-vindos a mais uma das Conversas do Confinamento. Hoje, tenho a Vânia Beliz aqui comigo. Que sigo já há imenso tempo, mas é a primeira vez que estamos a ter uma conversa. Muito obrigada Vânia, por teres aceite o desafio de estar aqui connosco a falar. A Vânia é psicóloga, sexóloga e doutoranda – estás a tirar agora – em Saúde Infantil. Vamos falar um bocadinho de como é que entraste neste campo. Tiraste primeiro o curso de Psicologia e depois foste descobrindo… ou vocês têm depois uma especialidade?
Vânia Beliz – Em primeiro lugar, obrigada pelo convite. É um privilégio também conversar contigo. Eu tirei o curso de Psicologia Clínica, que agora chamam Clínica e da Saúde. E depois, entretanto, tinha que escolher… eu já ficava com Psicologia Clínica, depois tu poderás especializar-te se escolhes na área infantil, ou da área sénior, és tu que acabas por escolher… não tens essa obrigatoriedade. Eu acabei por querer continuar a estudar e para o mestrado optei pela área da Sexologia, que era uma área que já há muito tempo eu tinha muito interesse. Depois sei que também é uma área existe onde existem poucos (profissionais), a área infantil – que era (para onde) a maior parte dos colegas ia, dificuldades de aprendizagem… – e eu pensei “não”. E depois não gostava de avaliação psicológica… havia ali uma série de coisas que me afastava da área infantil. Ainda trabalhei com seniores, durante algum tempo, e gostei muito, mas depois achei que a área da Sexualidade fazia tanta diferença na vida das pessoas que optei por ir para a Sexologia. Depois trabalhei algum tempo com a sexualidade feminina, não gostei muito da área clínica, no sentido de abrir um consultório e fazer consultas de sexologia, e comecei a apaixonar-me pela área da Educação. Porque sabemos que é através da Educação que conseguimos mudar comportamentos, não é? E achei que fazia muita falta. E então comecei a trabalhar com jovens. Tive uma rubrica no Curto Circuito, na SIC, e depois comecei a trabalhar com os mais pequeninos e agora o doutoramento é também com os mais pequeninos.
ADOLESCER
SR – Tens uns projeto que se chama Adolescer, queres falar um bocadinho sobre ele?
VB – O projeto Adolescer, ele surgiu de uma necessidade que eu identifiquei numa das viagens que fiz. Porque depois de muito trabalho de educação em Portugal e ter feito muitas escolas, muita formação de professores, pais, tive muita curiosidade em saber como é que as coisas acontecem noutros países. Conhecer outras práticas. E, na altura, em pesquisas, encontrei um grupo de rapazes que fazia educação por pares na Guiné. E resolvi ir lá e conhecer uma realidade completamente diferente. Aprendi imenso, partilhei… Nestas coisas tu não vais ensinar nada, costumo sempre dizer, tu vais partilhar e vais aprender.
SR – Todos aprendemos com todos…
VB – Todos aprendemos! Quis saber como eles faziam, quis conhecer um bocadinho a realidade do que é a experiência deles, do que é que é a sexualidade. Porque é diferente. A sexualidade é muito influenciada por questões culturais e lá também percebi a vulnerabilidade das meninas e das mulheres. Em Portugal, pensei… quando voltei… deixa-me ver como é que posso ajudar as meninas e se elas têm estas dificuldades da puberdade, das mudanças do corpo, da menstruação e comecei, na altura, no Município ode Serpa implementámos o projeto na área da educação sexual com seniores, com adolescentes e com meninas a entrar na puberdade. Em que as mulheres mais velhas falavam sobre o que e que tinha sido a sua primeira experiência com menstruação, as meninas adolescentes, da secundária, falavam também e começámos a perceber que afinal… mesmo havendo diferenças geracionais grandes os medos eram os mesmos. E há muito desconhecimento sobre esta área do feminino. E, então, criei o projeto Adolescer, que consiste na criação de uma bolsinha, de um kit que uma madrinha, uma mãe, pai, pode oferecer à sua filha como ponto de parida para conversar sobre a menstruação. Essa bolsinha tem pensos higiénicos, tem tampão, tem um flyer sobre o período, e a venda da bolsinha apoia projetos educativos, como criação de materiais, ações no terreno, neste momento já tenho com a venda das primeiras bolsinhas – comecei isto mais ou menos em abril de 2020 – já tenho o suficiente para poder fazer uma ação…
SR – Vai fazer um ano só?
VB – Sim, isto nasceu com o anterior confinamento. Pelo menos esta bolsinha. O projeto Adolescer, das sessões, da educação, de dar formação é anterior, mas este kit destas bolsinhas é recente. Eu desafiei a minha mãe, que estava em confinamento também, a costurar as bolsinhas, porque eu sozinha não dava conta do recado e a minha mãe disse “está bem”. E criámos este produtinho que serve para quebrar um bocadinho as conversas sobre o período.
SR – Ia dizer, tens aí algum à mão…
VB – É esta bolsinha. Ela é feita, a parte de trás é com gangas reutilizadas, pessoas que dão calças, roupa que não precisam… E depois, ela tem… os tampões (já temos uma marca que nos dá os produtos de higiene)… um penso de noite, um penso normal, um lencinho (de papel) que dá sempre jeito quando aparece o período e não estamos em casa, tem pensinhos diários, um folheto sobre menstruação e uma carteririnha de chá para aqueles dias parece que temos alguma coisa a sair pelo corpo.
SR – Um chá tranquilizante… de camomila!
VB – Exato. Outra coisa interessante é que estas bolsinhas depois vêm com um vales das marcas que se juntaram, e que oferecem vouchers de descontos para produtos ecológicos. Porque a maior parte das meninas tem dificuldade, numa primeira abordagem, numa primeira experiência com a menstruação de usar um copo, um penso reutilizável… mas depois vão uns vouchers, à parte, que elas podem, com as mães, ou com a tia, ou com a irmã mais velha, explorar o universo dos produtos de higiene e escolher aquele que mais se adapta a si. Isto também tem um lado ecológico, eu gostava que mudássemos o chip em relação à menstruação, mas compreendo que numa primeira experiencia não seja fácil as meninas lavarem o seu penso… e até porque quando te aparece o período ti estás fora de casa, tu procuras um penso, normalmente, não é? Esta bolsinha serve para isso. Serve também para aquela amiga que menstruou e está aflita e eu digo: olha, eu vou-te dar um penso. Porque nas escolas não há – e estou a falar-te da realidade daqui – fiz um estudo agora em maio (de 2020), no âmbito do Dia para a Higiene Menstrual (Dia Internacional da Saúde Feminina, dia 28 de maio), onde reuni 400 e tal respostas de mulheres e muitas queixam-se das condições das casas de banho; de não terem trancas na porta; não terem caixotes do lixo, para poderem depositar os pensos; de não terem água ou sabão para lavarem as mãos; portanto tudo isto…
SR – Estamos a falar de escolas, aqui em Portugal?
VB – Sim, aqui em Portugal. Nem vamos falar das outras escolas na Guiné, em São Tomé… que muitas não têm sequer casa de banho; que as meninas saem de casa, algumas andam quilómetros para ir para a escola, com aquele calor que tu sabes.. mas em Portugal tu tens meninas com dificuldade. Tens muita vergonha ainda associada à menstruação, não é? Tens meninas que se sentem envergonhadas por pedir ao professor, ou professora, para ir à casa de banho para trocar o penso… muitas pessoas dizem ter dificuldade em comprar. Pensas assim: uma embalagem de pensos custa 1 euro. Custa 1 euros se for uma marca barata. Mas há pessoas que não têm essa possibilidade e nesta estudo que fiz, mais ou menos 14% das mulheres respondeu que em algumas alturas têm dificuldade em comprar. E se formos para uma marca melhor – que absorve mais – estamos a falar de pensos que custam 3 euros e tal. Se formos para aqueles, agora, que respeitam o ambiente, biológicos… são ainda mais caros. Mas, por exemplo, em São Tomé, uma embalagem de pensos custa 5 euros. É impensável, não é? Portanto, já para não dizer que muitas meninas usam toalhas velhas; panos velhos, quando estão menstruadas; não se sentem confortáveis e isto mexe com a vida social e faltam à escola… Havia uma necessidade de fazer alguma coisa! E, então, este projeto Adolescer além das bolsinhas, além da parte educativa, de sensibilizar cá e neste países mais vulneráveis para a dignidade das mulheres que menstruam… Depois, tem desafiado outras pessoas a juntarem-se e então surgiu a campanha da recolha de cuecas, de algodão, que estamos a recolher no pais todo. E eu recebo encomendas de todo o país de pessoas que eu não conheço; que dizem, Vânia vou comprar duas cuequinhas para te mandar!. As pessoas que estão a costurar os pensos em casa, também tenho aqui para te mostrar…
SR – São pensos reutilizáveis…
VB – Sim. Vou-te mostrar os kits que enviámos e que estamos a enviar para estes países. Ele vem com três pensos. Nós tivemos uma mulher maravilhosa, do Porto, que é a Cláudia, que é costureira, que fez uma live e juntou muita gente a ensinar como se faziam os pensos. Ela própria fez o molde. Só para veres como eles são: esta parte é algodão; esta parte é uma flanela; e depois no meio leva uma espécie de um plástico, absorvente, mas respirável, que as pessoas às vezes compram nas retrosarias mas também podem comprar daquelas proteções de colchão, antibacteriana e respirável, e depois ele rende assim na cuequinha. Fica assim. E cada kit leva três pensos destes e depois leva umas cuequinhas. As pessoas vão mandando as cuequinhas e nós vamos juntando. Estas são tigresse! Para que as meninas… porque houve alguns momentos meninas em que enviámos os pensos, mas não tinhas as cuecas.
SR – Era isso que eu te ia perguntar. Tu depois tens lá alguém que gere isso. Das viagens que já fizeste previamente…
ENVIO DE MATERIAL PARA A MENSTRUAÇÃO
VB – Na Guiné tenho uma portuguesa do Porto, que está lá numa escola e que é ela que recebe os bidões. Eu para a Guiné envio em bidões as coisas, que depois também resulta da ajuda de amigos… então, Vânia, quando é que vais fazer o envio? Vou fazer no mês tal, então vamos fazer uma vaquinha. Ou eu vendo uns livros… estou a sempre a pedir coisas às pessoas. Eu sou uma pedinchona! As pessoas juntam-se. Cada bidão fica à volta de 120/150 euros, dependendo do tamanho. E tento colocar o máximo de coisas e depois demora um mês a chegar. Chega lá e esta amiga, que é a Fara, abre o bidão e separa as coisas para onde nós queremos enviar. Este ano, enviámos estojos para duas escolas, aproximadamente 500 e tal estojos. Também foi a Cláudia que fez o moldes e as pessoas começaram a enviar as canetas, os afias, e conseguimos fazer mil e tal estojos, porque entretanto já enviámos 600 para São Tomé. Distribuímos esse material básico em duas escolas, a todas as crianças, na Guiné. Ela vai fazendo a divisão, estojos para um lado, pensos para o outro… é ela que entrega no terreno. Também já temos lá duas pessoas que têm mulheres a costurar os pensos, então envio tecido. Porque há tecidos que lá são difíceis de encontrar. Envio o tecido impermeável. Agora temos duas mulheres que estão a organizar grupos, para elas fazerem os seus próprios pensos que depois também podem vender e ganhar alguma coisa para elas. Portanto, substituindo os simples panos
SR – Neste momento, já não é dar o peixe, é ensinar a pescar. E sobretudo isso de se enviar pensos que são reutilizáveis, que é ótimo, porque é muito difícil nesses países ter-se dinheiro para isso. Para nós é caro termos esse gasto mensalmente, para eles é quase impossível, não é?
VB – E também tens a questão da reciclagem. Nestes países não há tratamento do lixo. Tens esse problema também…
SR – Lá está, para quê enviar-lhes tampões se elas só iam usar esse e depois nunca mais ia usar, faz muito mais sentido enviar os recicláveis.
VB – E também são realidade onde, por exemplo, a maior parte das mulheres tem dificuldade em coisas internas. Quando fui a São Tomé, fez agora em outubro um ano, levei quase 50 copos menstruais e foi muito difícil sensibilizá-las a usar. Porque se tu não usas bem o tampão não vais conseguir usar bem o copo menstrual. Então tens de fazer a introdução. Eu levei os copos, tentei encontrar lá mulheres, mas quando tu falas em colocar qualquer coisa dentro da vagina, elas olham para ti…
SR – Como é que possível? Eu própria ainda há pouco tempo numa desta conversas disse, eu demorei cerca de 6 meses a habituar-me ao copo menstrual, mas agora não quero outra coisa. Mas, foi, tentativa, erro, tentativa, erro… voltava sempre atras e ia buscar os tampões e os pensos. Mas, outra coisa muito interessante e que acho importante ressaltar que é o facto de teres dito que há diferenças entre pensos, porque de facto nem todos eles são bons para o nosso corpo. Uns não deixam respirar o nosso corpo, e a nossa flora vaginal, etc. E os mais baratos vêm com plástico, que não deixam respirar, e os mais caros, hoje em dia, são os que têm algodão ou uma espécie de algodão. Por isso, acho que cada vez mais nos vamos virar para isso que é reutilizável, porque nos faz melhor, ecologicamente e a longo prazo é mais barato. Claro que temos de ter o trabalho de os lavar; mas, pronto, temos de arranjar forma de os fazer.
VB – E tens outra coisa fantástica, que eu pensava que tinha aqui à mão e não tenho, mas depois… tenho, tenho! Que é no âmbito desta procura…
SR – Pareces mágica, vais aí abaixo e parece que tens uma cartola do mágico!
VB – Isto aqui à minha volta, há coisas muito estranhas. Entre as cuecas menstruais e os produtos eróticos… isto é um quartinho daqueles!
DIGNIDADE MENSTRUAL
VB – Então, nesta coisa de procurar ajuda… recebi um amigo que tem um contacto… Vânia há uma pessoa que nos quer oferecer umas cuequinhas para o projeto. E o senhor diz-me assim, nós não queremos oferecer cuecas normais. Nós queremos oferecer cuecas menstruais. Eu nem acreditei! E a fábrica (de Lisboa) está a fazer-nos, esta semana, 300 cuequinhas destas. Eu fui ao armazém e saí de lá a parecer que tinha saído de um sonho. Quem são estas pessoas!?! É uma fabrica de roupa interior e fabricam cuecas menstruais. Nós vamos oferecer para o projeto. E eu pensei, vão oferecer? Eu dormi e acordei, no outro dia, e fui ver se as cuecas estavam mesmo lá. Não acreditava. Vai ser um apoio ótimo. Porque elas funcionam aproximadamente 4 a 6 horas e absorve o fluxo. Vai ser giríssimo consegui pôr as meninas a usarem as cuecas. Além de serem de algodão – algumas são sintéticas – elas são super confortáveis. Vamos introduzi-las primeiro em São Tomé porque juntei-me com mais 3 pessoas: a Sónia que é de uma organização pequenina, mas que faz um trabalho maravilhoso, que se chama Missão Dimix. Neste momento, está a recuperar uma escola, ela trabalha com ocupação de tempos livres das crianças. Neste momento, temos três máquina de costura e temos uma menina surda que está a fazer os pensos higiénicos. E estamos a procurar uma pessoa para ensinar mais meninas a costurar. A Sónia é portuguesa, da zona do Alentejo, e mudou-se para São Tomé. E, depois, uma médica santomense, que está em Madrid, a estudar Medicina, para começar a especialidade, e uma rapariga também santomense, que está no Reino Unido que é ativista. Juntamo-nos para criarmos este projeto que te vou apresentar: “Mina Muala Nón”. Percebo muito pouco de crioulo, mas terá a ver com “a minha menstruação”. Temos um slogan: pelo fim da pobreza menstrual em S. Tomé. E o objetivo é distribuir pensos reutilizáveis, as cuecas, é dar formação sobre estes temas e multiplicar os ateliês… temos arranjado máquinas, pessoas que trocaram e nos dão as máquinas de costura. O objetivo é replicar estes ateliês de confeção de pensos de pano.
SR – Acho o máximo os nomes que vocês arranjam, porque eles vão mesmo ao centro da questão, que é: a dignificação menstrual, porque há pessoas que não têm acesso a isso; mas também, eu penso que foi no teu perfil que li, que é… e ainda há pouco disseste, que é: há meninas que não vão à escola quando estão a menstruar, logo ficam mais atrasadas na matéria do que os seus pares, rapazes… por faltarem à escola todos os meses, quase uma semana, ou 3 a 4 dias, o que seja. E, lá está, esse tipo de ações, que vocês fazem, são importantes porque vão-lhes dar uma liberdade, de elas aceitarem a menstruação como uma coisa normalíssima, de se precaverem, de terem forma de terem material para isso tudo, para elas próprias poderem ir à escola e haver educação e tudo o resto. Ou seja, isto é um fio que não tem. Não é uma coisa para atingir um nível é para a vida toda.
“Desconstruir a ideia de que quando tu menstruas deixas de ser menina e passas a ser mulher”
VB – E ainda temos uma coisa mais grave, que também acontece no nosso país e que falamos muito pouco. Que tem a ver com desconstruir a ideia de que quando tu menstruas deixas de ser menina e passas a ser mulher. Desconstruir esta ideia é extremamente importante. Porque o que é tu que tens em muitas comunidades e também tens em Portugal? Quando tu menstruas, a comunidade passa a olhar-te como uma mulher e tu deixas de ser uma menina e isso abre portas ao casamento infantil. Por exemplo. Tens muitos sítios em que é, já desceu o período e já podes ter filhos e já podes casar. E tu tens meninas que o período desce, a menarca aparece aos 10 anos, e tu não podes casar aos 10 anos. Como também não podes casar aos 11, nem aos 12, nem aos 13, 14, em Portugal temos meninas que casam cedo, contra a lei portuguesa, e que têm filhos cedo… ainda há pouco tempo estive numa comunidade com uma menina com 15 anos grávida. E nós não podemos, de forma alguma, permitir isto. E estamos a falar de Portugal. Quando vais para outros sítios… devido a esta vulnerabilidade, em muitas comunidades, as meninas são entregues para que a família receba um dote ou uma oferta que permite subsistir durante algum tempo, seja com gado, arroz… A partir do momento em que as meninas menstruam, já ficam prontas para serem entregues. Então, temos de desmistificar isto, não é porque tu menstruas que passas a ser uma mulher. Tu já és uma mulher. Tu nasces mulher. Tu tens direito à tua infância e a menstruação não significa que estejas pronta para procriar e para casar. E isto é muito importante que as pessoas compreendam. E esse trabalho tem de ser feito junto das comunidades. És menina, mas tens direito a brincar. Porque quantas de nós não ouvimos avisos dos nossos pais: ai, agora tens de ter cuidado com os meninos…
SR – …já és uma mulher…
VB – Isso é muito errado. Porque depois tu tens meninas que choram quando têm o período porque já lhes dizem que não podem fazer uma série de coisas. E também tem esse lado: já para não falar de que a partir do momento em que as meninas menstruam não podes deixar de lhes ensinar uma série de coisas para que eles também se protejam
SR – Exatamente. Lá está, é toda uma mudança. Não é só num ponto. Não estamos só a falar de um kit de menstruação. Toda uma mudança de educação; e a educação é a base de tudo. Tu também, a falar de educação, és autora de três livros. Queres falar um bocadinho de cada um deles?
VB – O primeiro livro, já tem algum tempo é o “Ponto Quê”, que surgiu quando eu terminei o mestrado e a minha investigação foi na área da masturbação feminina. É um livro sobre sexualidade feminina. É esse livro que a minha editora me deu alguns exemplares e eu acabo muitas das vezes por vender e reverte para estas coisas, quando preciso de despachar um bidão…
SR – Isso foi alvo de uma pesquisa que tu fizeste, de algum estudo, que falaste com mulheres?
VB – No mestrado fiz uma investigação sobre masturbação feminina, onde tive acesso a 2527 mulheres. Foi um estudo online. Mas o livro é um livro leve, não é académico. Dividido em vários capítulos, sobre o desejo, sobre o prazer, portanto fala às mulheres de forma fácil. Um discurso fácil sobre as questões da sexualidade feminina.
SR – Todas mulheres de Portugal, é isso?
VB – Foi um estudo feito em Portugal. Mas o livro não te vai falar sobre o estudo. Vai-te trazer algumas reflexões, mas não é um livro nada académico. É aquele livro que tu podes oferecer à tua irmã, ao teu namorado, ao teu irmão… é um livro para sabermos mais sobre sexualidade feminina de forma descomplicada. Sem vocabulário académico. Depois, porque achávamos que era preciso – quando comecei a apaixonar-me pelas questões da educação – com outras duas grandes amigas, que é a Sara Rodi e a Célia Fernandes, resolvemos fazer um livro para crianças, que se chama “A Viagem de Peludim”. É um livro que ajuda os pais a conversarem com os filhos mais pequeninos sobre estes temas, responde a três perguntas: quem sou; de onde vim; e como nasci. E tem um guia no fim para os pais, para os educadores explorarem mais os temas. Aborda igualdade de género; aborda as perguntas que as crianças fazem mais ou menos no fim dos 4/5 anos e no primeiro ciclo; permite usar o livro para o pré-escolar e no primeiro ciclo e faz parte do Plano Nacional de Leitura. E, agora, por fim, tenho o “Chamar as Coisas Pelos Nomes”, que é um livro que também já vem com esta entrada no doutoramento que é o facto de haver muitos pais e muitos educadores a dizerem que precisam de um livro que os ajude a falar sobre isto. É um livro descomplicado, que desde o nascimento até à adolescência, portanto um pai que tenha filhos em várias idades, ajuda a refletir sobre a importância de falar sobre a sexualidade desde cedo.
SR – Mas pode ser também para adolescentes lerem, por exemplo?
VB – Não. É um livro que está direcionado para as famílias e para os profissionais. Não é para adolescentes. Sabes que já fui desafiada a fazer vários livros para adolescentes, mas tenho a sensação… para já, neste momento, como estou no meio destas coisas todas, não sinto vontade de escrever mais livros.
SR – Pudera! No meio de um doutoramento quem é que tem vontade de escrever mais?!
VB – E depois temos coisas maravilhosas. Por exemplo, sobre o período uso imenso o livro da Patrícia (Lemos), que se chama “O período”, que ela lançou há pouco tempo. Também temos o livro da Susana (Fonseca) que fala sobre a endometriose às crianças, que é muito giro. Às muitas crianças, que as mães têm muitas dores e desmistifica isso. Então, há tantos livros que podemos ir buscar e depois também compro muitos materiais fora, para trabalhar estes temas e, neste momento, estou mais interessada em criar materiais lúdicos, como jogos, para trabalhar estes temas do que propriamente escrever. E depois acho que os jovens procuram mais estas plataformas agora, não é? Eu lembro-me na altura do Curto Circuito, quando havia a rubrica de 15 em 15 dias eu tinha imensos jovens a procurar saber mais coisas e trabalho para a Control Portugal, o que me permite ter ativa, há quatro anos, uma linha de esclarecimento, das 6 às 8 da noite por WhatsApp. Qualquer coisa que precise pode contactar e eu respondo. Portanto, tenho essa proximidade com os jovens, através da Control. Trabalho com a Control já há 10 anos.
SR – Um dia destes vamos ter uma conversa sobre as perguntas que mais te fazem lá…
VB – Aparecem todos os tipos de perguntas porque o desconhecimento continua lá, por muito que tu fales das coisas. Nós temos uma excelente lei da educação sexual, mas não é implementada. Temos ótimas ferramentas, mas existe muito medo. Os professores não têm formação; os educadores também não; e isto dificulta a abordagem destes temas, já para não falar destes movimento políticos que não ajudam e são contra a abordagem deste temas, da diversidade, da cidadania… não são tempos fáceis para a educação sexual.
SR – Temos uma luta muito grande pela frente. Estava a ver também nas tuas publicações e achei engraçado haver uma Casa da Menstruação, em Porto Alegre, no Brasil. É daquelas coisas, que… imagina abrir uma Casa da Menstruação aqui em Portugal, era uma ótima ideia. Queres falar um bocadinho sobre isso e o teu trabalho também com o Brasil?
CURSO INTERNACIONAL “EDUCAÇÃO MENSTRUAL PELO MUNDO”
VB – Durante o primeiro confinamento (em 2020), descobri a Herself e duas mulheres magníficas que são a Raissa e a Vic; uma é bióloga e a outra da área da comunicação; e conhecia na Colômbia a Carolina que tem um projeto que se chama Princesas Menstruantes e começámos a falar; eu comprei os materiais da Carolina e comecei a acompanhar as cuequinhas menstruais da Herself pelo Brasil; aliás, fiz uma encomenda, recebi as primeiras cuequinhas, quando estás a criar um produtos, metes na net à procura de apoio… eu fui das pessoas que deu um valor. Depois, recebi e achei magnífico e fui acompanhando o trabalho delas. Com o confinamento começamos a falar e a juntarmo-nos. Elas têm uma fábrica de mulheres que confecionam as calcinhas menstruais. Só material feito lá; o produto é todo nacional e resolveram criar um espaço educativo e que fosse loja e que fosse também um espaço para oficinas (no confinamento não fazem). Querem que seja um espaço de educação. Tem uma biblioteca com recursos sobre a menstruação, em Porto Alegre. E, agora, pensamos em fazer um curso juntas e lançamos ontem as inscrições para este curso internacional que coloca Portugal – Brasil e Colômbia. O objetivo é darmos formação durante cinco meses a mulheres que queiram trabalhar estes temas com as suas comunidades. Então, criamos o curso, que dura cinco meses, e ontem estava quase esgotada a primeira edição. Estamos super felizes, até porque são experiências muito diferentes, o que nos dá outra perspetiva. O trabalho da Carolina, que trabalha há mais tempo na área da educação menstrual, tem materiais fabulosos, e na Colômbia também existem muitos desafios nesta área. Estamos juntas; é a vantagem das tecnologias de podermos fazer um curso entre três países e estou desejosa de poder viajar para as poder conhecer. Não sei quando é que vai ser.
SR – Que maravilha. Eu tinha lido isso precisamente, chama-se Educação Menstrual pelo Mundo, quatro educadoras, de três países diferentes, pela dignidade menstrual. Lá está: dignidade, dignificação… muitas vezes as pessoas perguntam o que é isso do empoderamento feminino. É tanta coisa que é difícil explicar, mas passa por estas pequenas coisas, dar o poder às mulheres de poderem decidir.
VB – Não nos podemos esconder de uma coisa que é natural, não é?
SR – Que vamos ter quase a vida toda e todos os meses. Aprender a lidar com ela, da melhor forma, será o melhor. Eu deixei, de propósito, toda a parte da sexologia de parte desta conversa.
VB – Que é para a outra conversa.
SR – Fica para a outra conversa depois. Porque tu tens, de facto, estas duas partes, ou três ou quatro; estás envolvida em tantos projetos que é muito interessante e enquanto falavas eu estava a apontar aqui: missão de São Tomé e a Carolina da Colômbia, que será também interessante falar com elas, que têm a perspetiva de estarem lá. Quando viajas, passando agora um bocadinho por essas viagens, nós falamos disso há pouco, nós aprendemos todos. Não podemos chegar lá e: agora vou-vos ensinar como a gente faz na Europa… isto é terrível, não é? Porque eles têm condições culturais e tradições completamente diferentes e tu falavas precisamente da dificuldade de se há pessoas que nem um tampão sabem usar como é que que vou chegar lá e tomem lá 50 coletores menstruais e adeus.
VB – É uma abordagem completamente errada. Já para não falar que é uma visão colonialista. De, “ah, vamos lá, brancos, ensinar”, isso faz-me muita confusão e eu tenho muita – até porque posso dizer-te – que todos os meus materiais são o máximo adaptados à população… Eu tenho modelos genitais negros. Eu tenho pósteres com imagens negras. Acho que é importante trazermos o que é bom daqui e haver uma troca. E se houver alguma coisa que eu possa melhorar, perfeito, mas quela ideia de que vou lá ensina, não! Isso eu não quero de todo! Eu não me vejo neste momento a fazer uma viagem de férias.
SR – Já não dá, porque levamos sempre o trabalho atrás, compreendo.
VIAGENS EM TRABALHO
VB – Quero ir ao Ruanda conhecer aqueles mulheres que estão a ensinar as mulheres a terem prazer. Eu quero ir ao Uganda conhecer as fábricas de pensos menstruais; eu gostava de ir ao Nepal conhecer uma ativista que trabalha com mulheres. Gostava de ir à Índia conhecer uns parceiros para o qual fizemos uma tradução de um livro, que ainda não saiu, e que gostava muito de poder ir conhecer o trabalho que eles fazem no terreno. Até porque na Índia, a menstruação é considerado algo impuro. E têm feito um trabalho para desconstruir isso. Gostava de ir à Colômbia para acompanhar o trabalho da Carolina. Ao Brasil, àquelas zonas mais interiores, portanto tenho muita vontade de viajar para conhecer outros educadores e não consigo imaginar estar estendida (na praia)…
Aliás, eu fui a São Tomé e dei um mergulho, porque a Sónia disse assim, “vamos parar porque é indecente tu vires a S. Tomé e não ires ver a praia”. Então, fomos dar um mergulho. Choveu torrencialmente conforme entramos dentro de água; tivemos de correr para o jipe não ficar atolado. E, de resto, foi desde as oito da manhã até às 6 da tarde, sempre a trabalhar nas comunidades. Porque, quando cheguei a S. Tomé, a Sónia é muito organizada… E dizer isto é muito importante, foi a Sónia que, através da organização, conseguiu o apoio para me pagar a viagem. O meu trabalho é voluntário mas eu não posso gastar dinheiro para fazer estas coisas. A primeira vez que fui à Guiné paguei a viagem; mas neste momento não faz sentido, até porque nós sabemos que muitos países recebem muitos financiamentos, que depois são desviados sabe-se lá para o que – é uma realidade muito triste – portanto, já estás a dar o teu trabalho, pelo menos tens de ter um alojamento e a viagem. Tem sido assim que eu tenho feito: dou o meu trabalho e consigo que me arranjem o voo e o alojamento. A Sónia fez um investimento na viagem e programou aquilo… eu disse, usa-me à vontade, então ela programou com vários públicos. Eu disse-lhe o que eu podia fazer, e ela disse ok: para formação de professores, vamos fazer isto; para formação de comunidade, fazer isto; crianças, isto; jovens, isto; então, tinha uma lista de escolas e sítios para ir. E, então, a dada altura tenho uma foto magnífica em que paramos à frente da escola e ela adormeceu. E ela: eu estou estourada, não sei como é que tu… São sessões que não podes levar nada muito preparado. Porque tu não tens um powerpoint; tu estás num sítio e podes ter 20 pessoas, como eu fui a uma escola para serem duas turmas e de repente os meninos saíram todos das semanas e meteram-se todos no pátio, com as cadeiras, à espera de me ouvir. E eu pensei: como é que vou conseguir falar para tanta gente? E posso dizer que foi mais fácil ali, do que em algumas turmas do secundário cá. Só para veres como existe interesse de aprender.
SR – Ia perguntar quais tinha sido as maiores surpresa, a nível de maior desafio; o que te custou mais, e ao mesmo tempo outra coisa que tu disseste assim: wowww! Por exemplo, isso foi um wow, teres ali tanta gente a olhar para ti e interessada em ouvir-te. Se calhar nem estava à espera disso, mas também às vezes o melhor é ir sem expectativas. Quais são os maiores desafios?
VB – A alimentação para mim é sempre difícil. Em São Tomé a coisa correu muito bem; na Guiné nem por isso. Porque eu não sou muito fácil de comer coisas diferentes; e os sabores eram todos muito diferente. Nunca tinha saído assim… já tinha saído da Europa, mas nunca tinha ido para um pais mais vulnerável, portanto ia completamente sem expectativas de nada e foi difícil isso. Foi difícil não ter uma casa de banho, como nós estamos habituados. Lembro-me a primeira vez que fiz cocó, eu pensei agora como é que eu vou a água aqui. Com um copo, sabes? E agora, isto não vai para baixo? Como vou fazer?!
SR – A parte da conversa escatológica é sempre boa nas viagens. Quando vou com grupos assim para Marrocos e para a Índia… e eles dizem assim, “Susana não tem autoclismo. Tem um balde com um copo!”.
VB – Isso! Isso! Mas eu não sabia muito bem como funcionava. E quando fui à Guiné pela primeira vez, que foi o primeiro impacto e vim de lá fascinadíssima. Tive uma sensação de pertence muito grande. Não sei explicar porquê. Gostei, Cheguei lá de noite. O voo chegou às 10 e tal da noite, portanto estava tudo escuro, porque (não havia luz). E tive a sensação de que era a única pessoa clara no meio de tanta gente, no meio do bairro. Toda a gente a olhar para mim. E eu via tudo escuríssimo. As mercearias e lojinhas tudo aberto a meio da noite. Imensa gente no meio da rua. Um calor!… Eu fui em dezembro. E quando cheguei pensei que era do avião aquele calor. Comecei a andar e percebi que não. Fica a quatro horas daqui, Não é do outro lado do mundo. E depois foi chegar… aquela ideias que te metem: os mosquitos e os bichos. Cheguei e não havia janelas! Havia uma rede e eu pensei… ai meu Deus. Pensei, vou pulverizar-me. Eu chegava de manhã e eles diziam-me, Vânia você cheira a esse produto dos mosquitos!
SR – Ehehe! Citronela all around
VB – A primeira noite foi extremamente difícil. Porque ninguém me explicou que eu tinha ficado ao lado de uma mesquita e eram cinco e tal da manhã e aquilo começou a chamar para a reza. E eu não sabia o que era. Não dormi nada, porque cheguei de noite e estava desejosa de ver tudo. A comida foi difícil, porque o arroz é muito diferente do nosso. O sabor era muito diferente. A galinha era duríssima. Mas, depois, ao segundo dia pensei vou explicar-lhes que só como fruta. Porque quando comecei a ver aquele caldo de peixe, pensei não… não vou comer isto, não consigo. Eu sou muito esquisita com comida. Eu comecei a ver as bananas, as melancias e os restantes dias eu comi fruta e a coisa safou-se.
SR – Pronto, menos mal, estavas garantida.
VB – Agora, em São Tomé comes muito bem. Senti falta de uma bebida mais fresca, sem ser Fanta ou Sumol. Ah, desafios desde teres dificuldade para apanhares o transporte. Ter de me esconder, na Guiné, para eles negociarem o táxi. Sabendo que eu era branca cobravam-me o triplo. Agora, escondes-te aí.
SR – Vendo que és visivelmente de fora, eles aproveitam-se… é um facto.
VB – Na Guiné, uma coisa que gostei imenso, foi ter conhecido uma comuidade albina. Que temos apoiado também. De repente, comecei a ver chegar pessoas brancas, um branco diferente. Nunca tinha visto uma pessoa albina.
SR – Eles também são postos de parte…
VB – Sim! Ainda que naquela comunidade onde eu estive eles não tivessem reportado muito isso. Há países onde eles dizem que não têm albinos. E não tem porque quando nascem são mortos. Disseram-me: vais conhecer uma comunidade albina. E começaram a aparecer pessoas branquinhas e loiras e crianças, de repente, trazem-me um bebé albino. Foi uma experiência…
SR – Uma das coisas engraçadas em São Tomé, era as crianças a chamarem-me Senhora Branca. E eu dizia, sou a Susana. No inicio, os miúdos andavam à nossa volta e diziam. Senhora Branca. Aquilo metia-me uma impressão. É assim uma coisa tão colonialista e que eu odeio. Sou Susana, chama-me Susana. Ah, Susana, anda aqui ver isto.
VB – É que nós somos muito diferentes. Eu quando vi os albinos também fiquei a olhar, porque eles são muito diferentes. Uma coisa é veres na televisão e outras coisa é veres ao vivo. Não deixas de olhar. E quando entras numa comunidade em que são todos completamente diferentes de ti, é normal que olhem para ti.
SR – Mas nunca senti que me tratassem diferente por causa disso. Que é uma coisa muito engraçada.
VB – E notas isso muito na Guiné. Porque eu ia com esse medo. Nós temos uma História não muito positiva. E tratam-te muito bem. Ao contrário dos meus amigos que vão a Moçambique já não dizem isso.
SR – Isso depende muito. Depende de quem nos recebe. Eu também tive uma guia em Moçambique que me falava, com tristeza, da presença portuguesa. Mas houve outras pessoas que diziam que ainda bem que tivemos os portugueses para desenvolver, que pena não termos mantido… temos aqui os dois pratos da balança. Nunca vamos conseguir ver as coisas dessa forma. Outra coisa muito interessante que eu costumo dizer sempre sobre a Índia é que nós somos tão curiosidade para eles como eles são para nós. Isso passasse também em todos os países. Isto de os miúdos me chamarem Senhora Branca… nós vamos lá à procura de uma cultura diferente e de vivermos essa cultura diferente e tudo e eles também querem isso de nós. A receita que eu deixo para toda a gente: deixem-se levar e falem-lhes, olha no meu país, fazemos assim. Não quer dizer que é melhor, pior, não! Mas é mostrar-lhes que existem outras realidades assim como eles nos estão a mostrar a nós.
VB – Aqui, no Alentejo temos agora uma comunidade muito grande de indianos…
SR – E do Bangladesh. Aqui no Algarve também. É incrível!
VB – Houve uma celebração qualquer em que eles para as mesquitas e se vestiram de forma diferente. Eu dizia assim ao meu namorado… eu sempre achei os indianos muito bonitos! Não é um fetiche, mas acho-os muito bonitos, Aquele cor. Aqueles dentinhos. E alguns com os cabelos muito lisinhos. Eu acho-os lindíssimos e lias também são muito bonitas. Quando houve essa comemoração eu ligava às amigas e dizia assim, vamos para casa que soltaram os indianos e eles estão com as roupas brancas, com aquela cor deles… são lindos!
SR – É muito cativante!
VB – Foi muito giro ver a reação das crianças. Nós temos em Serpa um projeto muito interessante na área da educação para a diversidade cultural e é muito giro ver as crianças dizerem: aqueles senhores com o turbante.
SR – A aceitarem que é normal
VB – No início tinham medo e agora, através do projeto educativo, existem pessoas diferentes no mundo. Tu tens que educar para isto. Porque estas alterações culturais vão existir cada vez mais. Precisas de falar de mutilação genital feminina, quando tens mulheres que estão a chegar de países onde foram vitimas de mutilação. Já não existem assuntos que são só de Portugal e dos outros países!
SR – Até engulo em seco com esse tema (mutilação genital)…
VB – Não podemos dizer, “ah não vamos falar disto”. Aqui, não temos uma taxa muito elevada de gravidez na adolescência, quando comparas com outros países. Mas não podes deixar de falar disso. Como se, não vou falar disto que isto não se passa cá em Portugal. A multiculturalidade está aí com vários desafios todos. Eu acho que traz coisa mais positivas do que negativas. É sempre bom sairmos da caixa.
SR – Vânia, muito obrigada pela entrevista. O tempo voa e já estamos há uma hora a falar. Muito obrigada por todos os ensinamentos e pelo teu trabalho nisto que, de facto, a palavra bem utilizada é dignidade menstrual.
VB – E se alguém nos quiser ajudar, precisamos de cuequinhas e várias ajudas. Entrar em contacto e perguntar, como podemos ajudar? Queremos enviar cuecas e pensinhos.
SR – Começas a pôr (nos bidões) a dizer: material de empoderamento feminino. Muito obrigada, Vânia!
Nota final: nos próximos meses vão enviar bidões com mais material, por isso estão sempre a tempo de ajudar.