Nas “Conversas do Confinamento”* entrevistei a Catarina Oliveira**. “Não é o fim do mundo”, diz-nos de sorriso aberto Catarina, autora da “Espécie Rara Sobre Rodas”, que nos faz olhar a vida com outros olhos. Em 2016, um problema de saúde fez com que tivesse de passar a andar de cadeira de rodas, e isso trouxe-lhe uma missão: defender mais meios e menos preconceitos e estereótipos para as pessoas com deficiência; lutar contra o Capacitismo e, como ela diz, “Por cada vez que pensares que o meu maior desejo é voltar a andar, constrói uma rampa. Agradeço”. A conversa foi totalmente transcrita e pode ser lida mais abaixo.
*O que são as “Conversas do Confinamento”? Perante um novo confinamento geral, em Portugal, iniciado a 15 de janeiro de 2021, decidi começar uma série de entrevistas, de forma a dar a conhecer o trabalho de muitas mulheres, em várias áreas, mas sobretudo no trabalho em prol do outro, na saúde, sexualidade, no desenvolvimento pessoal, no auto-conhecimento e nas viagens, claro!
Entrevistas que trouxessem conhecimento e inspiração durante todo o confinamento.
Essas entrevistas foram o primeiro passo para criar o site Mulheres em Viagem, que é um site irmão do Viaje Comigo.
Mulheres em Viagem… porque a vida é uma viagem!
E quem sou eu? Sou a Susana Ribeiro, jornalista, comunicadora, viajante e fundadora do site de viagens Viaje Comigo e do Mulheres em Viagem. E a entrevistadora das “Conversas do Confinamento”.
Sejam bem-vind@s ao Mulheres em Viagem.pt – uma Comunidade de e para Mulheres Extraordinárias… como Tu!
**Quem é Catarina Oliveira?
32 anos, natural do Porto e finalista da Licenciatura em Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto. Sempre trabalhou em diferentes áreas, desde a hotelaria, promoção de eventos e como Dj, fazendo parte de uma dupla, atividade que permanece ativa nos dias de hoje. Sendo apaixonada pela comunicação, criou uma página no instagram (@especierarasobrerodas) onde um dos seus principais objetivos, é mudar mentalidades, quebrar preconceitos e tabus relacionados com as pessoas com deficiência. Atualmente é uma das embaixadoras da Associação Salvador, uma entidade que visa apoiar pessoas com deficiência motora. Trabalha também como palestrante em escolas, universidades e empresas com o objetivo de esclarecer mitos e expor problemas relacionados com a acessibilidade, a inclusão e a representatividade da pessoa com deficiência. Página de Instagram
CONVERSAS DO CONFINAMENTO – ENTREVISTA COM CATARINA OLIVEIRA – TRANSCRITA NA TOTALIDADE
Susana Ribeiro – Então, muito bom dia, ou muito boa tarde para muitos. Hoje, tenho aqui a Catarina Oliveira do “Espécie Rara Sobre Rodas”. Já vamos saber tudo sobre isso. Não tem página no Facebook, mas podem segui-la no Instagram e no YouTube
Catarina Oliveira – Certo. Corretamente. Estou mais pelo Instagram.
SR – Agora tens trabalhado mais nessa parte do Instagram, para fazeres o teu trabalho de consciencialização por lá. Nestas conversas, sempre só com mulheres, começo sempre por dizer vamos ao início. Tu és da área do Marketing?
CO – Eu estou a terminar agora, entrego a tese dia 26, vou ser Nutricionista. Sou nutricionista estagiária. Não tenho formação em marketing, mas descobrir ao longo do tempo que adoro essa área da comunicação e do marketing. A minha formação é em nutrição.
SR – Estás a ver, pela minha pergunta, quer dizer que acho que tens aí um talento nato, podes ir crescendo. Porque com o teu trabalho, hoje em dia, tem que se fazer parte das redes sociais, para a nossa voz chegar mais longe
CO – Sem dúvida
SR – A Catarina, para quem não sabe… A Catarina é uma pessoal normalíssima, como ela adoooora que digam!
CO – Adooooroooo. Eu sou normal!
SR – Mas, ditou um problema de saúde, que ela tivesse de andar numa cadeira de rodas e isso implica, obviamente, algumas mudanças, porque infelizmente o nosso mundo não está feito para pessoas que andem de cadeira de rodas. Até gostava de te dizer uma coisa que descobri. Em novembro fui a convite do turismo do Dubai e estava lá num museu, quando a rapariga disse: temos acessibilidades e diz em inglês, portanto não há uma tradução para português, People of Determination. E eu eu fiquei a olhar para ela, e disse “People of Determination”? E ela, sim, pessoas com cadeira de rodas ou alguma problema de locomoção são People of Determination. Nunca encontrei uma… eu acho lindo.
CO – Sim. Nunca tinha ouvido também.
SR – Porque é isso que se tem de arranjar… determinação.
CO – Determinação…
SR – Porque tu fazes realmente esse alertas de não há acessibilidades, muitas vezes. Ainda agora, durante as eleições presidenciais, postaste um vídeo que havia mesas de voto que não tinham acessibilidade para as pessoas irem votar. Voltamos ao inicio. O que é que te aconteceu… porque as pessoas ficam obviamente…
CO – Curiosas… óbvio…
SR – O que é que aconteceu?
A HISTÓRIA DE CATARINA
CO – Então, eu tenho 32 anos, agora e há cinco anos atrás, tinha eu 27, estava no Brasil. Tinha ido para o Brasil, visitar uma amiga na altura e tive uma inflamação na medula. Não se sabe exatamente o que aconteceu, até hoje. Eu fui já de Portugal com uma dorzinha nas costas, mas como fazia desporto – sempre fiz e ainda hoje faço – achei que era alguma coisa muscular. Lembro-me até de dizer à minha mãe, que estava com uma dor nas costas e ela até me receitou um relaxante muscular. E, pronto, aquilo até passou. Cheguei lá comecei a sentir uma dormência nas pernas e ainda cheguei a ir ao hospital, porque era estranho e disseram-me que seria talvez do nervo ciático, da compressão do voo, de ter estado muitas horas sentadas e etc. Aquilo foi um bocadinho fulminante, lembro-me que ainda fui à praia. Como foi uma coisa… foi fulminante, mas foi gradual, ou seja, eu fui perdendo a força, mas não estava a perceber bem o que era. Parecia mesmo alguma compressão nervosa, alguma que me estava a incomodar… quando temos uma compressão nervosa e ficamos meio presos. Achei que era por aí. Até que houve um dia em que acordei e já não me conseguia levantar e o que era. Mas simplesmente não tinha fora nas pernas e, aí sim, fui outra vez ao hospital e fiquei internada e dentro de vários exames – isto resumindo muito – descobriram que tinha sido uma inflamação da medula, o nome técnino/médico é mielite transversa. Que é uma inflamação na medula e não sabem o que é que aconteceu. Se terá sido possivelmente alguma coisa autoimune, ou seja, que o meu corpo reagiu de forma exagerada a alguma coisa. Geralmente estas mielites são causadas por vírus ou bactérias. Nunca descobriram nada e fiz muitas punções lombares e nunca descobriram exatamente o que aconteceu. E isso fez com que eu fixasse sem sensibilidade ou movimentos nos membros inferiores e, hoje em dia, desloco-me em cadeira de rodas. O resumo da ópera foi esse. Depois passados meses vim para Portugal…
SR – Quanto tempo é que levou… primeiro foram dias com esses sintomas
CO – Foi uma semana mais ou menos.
SR – Sem pré-aviso nenhum…
CO – E depois fiquei internada desde dia 1 de janeiro. Na passagem de ano já estava meio deitada. Lembro-me que estava em casa com uns amigos, lá no Brasil. Estávamos meios na cama a beber champanhe, mas na cama, porque eu não estava nada bem. E no dia seguinte já não me conseguia levantar. Até fui às cavalitas de um amigo meu para o hospital e fiquei internada de 1 de janeiro a 17 de fevereiro. Porque entretanto… para quem não conhece, mas o Brasil, o Carnaval é o fim do mundo e basicamente pára tudo. E aquilo era no Carnaval, em fevereiro, e eu tinha que vir – já tinha viagem marcada -, mas depois uma das minhas pernas começou a inchar e achávamos que podia ser algum tromboembolismo e, então, tive que fazer um dopler… só que estava tudo parado. Então tive de esperar mais semana, adiar a viagem e… não era nada, mas tive que vir dia 17 e vim direta para o (hospital) de Santo António, aqui no Porto, e fiquei para aí mais três meses internada. Porque refiz os exames todos e comecei a fisioterapia lá e depois fui para o Centro de Reabilitação do norte, mais dois meses… Eu só saí para a vida real, digamos assim, para aí em julho.
SR – O Centro de Reabilitação era na tentativa que conseguisses andar novamente, ou foi para te adaptar já à cadeira de rodas?
CO – Foi para me adaptar. Nunca foi na tentativa de voltar a andar, porque a inflamação – lembro-me até no hospital tive uma conversa com a médica… Eu antes de estar em Nutrição estive em Medicina, portanto, eu tenho mais ou menos noção… tinha noção plena do que me estava a acontecer – e sei lá, falava com os médicos das ressonâncias, ou seja…
SR – Tinhas médicos na família?
CO – Também. A minha mãe também é médica. E o médico na altura disse-me, olha, Catarina, como é óbvio já deves saber mas as possibilidades de tu voltares a andar são muito pequenas, porque a medula está lesionada e tu percebes o que é a medula e a complexidade da medula. E eu disse que sim. Lembro-me na altura de perguntar se podia ser mãe. E ele que, claro, não haveria problema nenhum, à partida se não tivesse problema nenhum se não tivesse problema no útero. E eu só queria sair do hospital. Para mim, o pior de tudo foi ficar internada e eram cateteres e coisas… era horrível e depois lá uma bactéria, tive de ir para isolamento. Olha, foi assim uma coisa terrível… o internamento. E portanto no Centro de Reabilitação foi mesmo eu readaptar-me a fazer tudo agora noutra condição, não é? Desde o vestir, ao tomar banho, desde as transferências… não foi o com o objetivo, aquela coisa floreada que se fala muitas vezes nas novelas de: muita fisioterapia e vais voltar a andar. As coisas não são assim. Mas é para nós nos adaptarmos para sermos o mais independentes possível, agora numa nova condição. Foi nesse sentido.
“NÃO VOU PODER PARAR A MINHA VIDA, POR CAUSA DO QUE ME ACONTECEU”
SR – Lembro-me até num TedEx que fizeste, em Matosinhos, disseste que o simples facto de cruzar a perna, que é uma coisa que a gente faz sem pensar. Foi uma coisa que tiveste que apreender.
CO – Sem dúvida. Até porque a minha lesão é um bocadinho, é mais na T6, na Torácica 6, mais ou menos, portanto afetou-me um pouco também o equilíbrio. Ou seja, para mim, o simples facto de pegar na minha perna – ah! E eu sou grande, tenho 1,77m, portanto as minhas pernas são enormes – só o simples facto de perna na perna e cruzar – e eu gosto muito de estar de perna cruzada, é uma posição confortável para mim – no início era: ai Meu Deus, como vou fazer isto naturalmente. Hoje em dia, cruzo a perna quase sem pensar, mas obviamente com a ajuda da mão. Mas, lembro-me que no início era uma coisa que… eu tentava e a perna caía e não ficava direito. Eram trinta por uma linha para fazer uma coisa tão simples como cruzar uma perna.
SR – É um reset… que tens de reaprender tudo. Alguma destas perguntas, eu confesso que vi lá no TedEx, em que fizeste uma brilhante apresentação. Muita gente te pergunta, quando nos acontece isto tipo de coisas, sejam elas de saúde… o que quer que seja, às vezes… muitas pessoas com cancro a primeira coisa que perguntam é “porquê eu”? E na entrevista disseste que ainda bem que tinhas sido tu, porque encontraste aqui uma missão de poder ajudar outras pessoas com as mesma questões que tu, não é?
CO – Claro… sim! E uma vez vi um amigo meu, o Bento Amaral, que muita gente deve conhecer, ele é tetraplégico e já há bastantes anos. E é uma pessoa perfeitamente resolvida na vida, no sentido de trabalho, tem família, ou seja, a cadeira não o impediu de fazer as coisas. E ele uma vez disse que é assim: quando nos acontece alguma coisa assim, temos muito essa tendência do “porquê eu”, ou “o que é que eu fiz para merecer isso”. Mas quando ganhamos o Euromilhões não perguntámos, porquê eu. Ficamos felizes, porque é uma coisa boa. Ou seja, obviamente que ninguém pede para alguma coisa destas acontecer e, é o que costumo dizer se pudesse tomar um comprimido e voltar a andar, obviamente que voltaria porque a vida é muito mais fácil. Mas, eu nunca me perguntei efetivamente e honestamente “Porquê eu”. Foi simplesmente, ok, isto aconteceu-me, não é uma coisa fixe, mas eu vou ter de continuar a minha vida, agora de uma forma diferente. Não vou poder parar a minha vida, por causa do que me aconteceu.
SR – Também essa racionalidade, lá está, tem muito a ver, provavelmente, com o facto de tu já teres conhecimentos de medicina… terá ajudado um pouco. Ou seja, tu perceberes de facto que essas coisas acontecem.
CO – Sim!
SR – Porque uma pessoa, numa semana, de um momento para o outro, fica nessa condição e de estar meses no hospital… é um embate muito forte. Se calhar, para quem não entende que estas coisas podem de facto acontecer. Ninguém está livre que não aconteça.
CO – Sim. E acho muito que me aconteceu, que eu deixei de andar. As pessoas de fora o que vêm imediatamente é uma pessoa que não anda e coloca-se muito um peso na questão, “ah como é que reagiste que soubeste que não ias voltar a andar”. Quando para mim isso nunca foi a principal questão. Eu quando estava no hospital, eu queria sair do hospital, quando estava no CRN, eu queria voltar à minha vida, eu quando vim para a minha vida, às vezes irritava-me com coisas que comecei a ter de fazer mais devagar. U seja, eram pequenas coisas que obviamente estão todas ligadas ao facto de eu já não andar, mas eu não pensava imediatamente “quem me dera voltar a andar”. Não! Era “eu queria trabalhar para ser o mais independente na minha situação agora”. Porque eu… e aí acho que tens muita razão, pelo facto de eu também conhecer o corpo humano e de… pronto, estive quatro anos em Medicina. Já estava numa fase avançada e tinha muita noção…. tenho muita noção do que é a medula… tenho a noção, porque estou a par, da investigação que se tem feito. E de quão longa é essa investigação ainda. Eu não sou sonhadora ao ponto de: amanhã vou mexer o pezinho. Ou se fizer fisioterapia vou começar a andar. Eu tenho noção da minha condição e acho que o que está ao meu alcance é manter-me ativa e lutar para que seja o mais independente possível no meu dia a dia.
SR – Na altura, o que pensavas era: eu quero tentar ter a minha vida de volta, não como ela era – há muitas coisas que não vou conseguir fazer – mas a maior parte consegues fazer.
CO – Sim, sim, sem dúvida! Lá está, as coisas fazem-se de forma diferente, mas fazem. Não há nada que eu não faço hoje em dia. OK, não ando e não corro, mas de resto muitas vezes tem que ser com ajuda… é assim, se eu quero ir visitar um sítio que – e já nem estou a falar de sítios que não são acessíveis – mas de sítios que não são acessíveis, como subir a uma montanha, eu não estar a achar que me vão construir ali uma rampa espetacular para destruir ali a natureza. Mas, pronto, às vezes tem que ser com amigos, levam-me às cavalitas, etc. Mas as coisas fazem-se de forma diferente.
SR – Criaste o canal do YouTube há quanto tempo?
CO – Acho que foi mais ou menos há quatro anos. Porque comecei a fazer alguns vídeos no Instagram, às vezes também em stories, assim meio brincadeira e comecei a perceber que havia alguma interesse e necessidade… uma urgência em falar destas questões da pessoa com deficiência. Também com alguma… a relativizar a questão. Não é tirar o peso mas é naturalizar a questão da pessoa com deficiência e as coisas que nós passamos e como é que é a nossa vida.
SR – Eu achei piada que puseste um dos teus posts no Instagram que falava da questão de: quando nós vemos as telenovelas, e acontece à má uma desgraça, ela vai para uma cadeira de rodas. E tu dizias assim: porque é que falam sempre disto como uma tragédia e que se tem, no teu sentido, na tua forma de pensar, de normalizar a questão, para de facto quando este tipo de coisas acontece, assim de um momento para o outro as pessoas consigam normalizar e consigam pensar um bocado “ok, vou ter de me adaptar e não aquela tragédia que fazem nas telenovelas”. Alguns filmes conseguem fazer isso, mas para o lado do People of Determination, não é?
Catarina Oliveira – Sim, sim! Exato!
Susana Ribeiro – Mas depois temos isto são quase polos opostos, isto é, ou são uns heróis ou são uns coitadinhos. Que é a pior palavra que se pode ouvir…
Nas telenovelas: “O pior que pode acontecer a uma vilã é ela ficar paraplégica, ou ficar numa cadeira de rodas”
CO – Exatamente! Sem dúvida. E lá está a questão é nas novelas, o pior que pode acontecer a uma vilã é ela ficar paraplégica, ou ficar numa cadeira de rodas porque vai ficar altamente dependente. E porque vai ser uma coitadinha. E as pessoas encaram a deficiência como um castigo, como uma penalização, como nós estarmos presos à cadeira, quando efetivamente a cadeira é que nos permite fazer a nossa vida. E existe muito essa ideia e a pessoa que está ali naquele sofá, a ver aquela novela, obviamente que depois vai na rua e vê uma pessoa que vai na cadeira de rodas e vai pensar: “ah coitada, que karma, que condenação, que pena!” Quando, o que acontece é que se a pessoa na cadeira de rodas não vive melhor, do que vive, não é pela cadeira de rodas. É pela falta de acesso que tem, porque está numa situação que a sociedade não abraça, digamos assim. Acho que há essa polarização da pessoa com deficiência, que é ou “temos pena” ou exaltamos ao ponto de ser heróis e guerreiros e etc. E isso também nos invalida. Porquê? Porque todas as nossas conquistas são validadas com a nossa deficiência. Ou seja, eu sou uma heroína e uma guerreira porque tenho uma deficiência e faço as coisas corriqueiras do dia a dia: “Ah, cozinhas? Que máximo!”; “Conduzes? És uma heroína”; Namoras? Meu Deus, que sorte que tiveste!”. Ou seja, é tudo assim e não pode ser! Eu costumo muito dizer isto: tu aplaudes-me quando eu ultrapasso um obstáculo mas não estás disposto a ajudar-me a destruir aquele obstáculo. Isto é uma discriminação velada de um elogio. E isso não pode acontecer! Não tenho problema nenhum que me digam: “Ó Catarina és mesmo resiliente, porque estás a trabalhar e a fazer a tua tese. Fogo, isto é preciso uma gestão”. Agora… és mesmo uma guerreira porque estás a fazer uma tese em cima de uma cadeira de rodas… isso já é discriminação.
SR – É engraçado porque eu acho que as pessoas nem pensam nessas coisas que digam, pois não? Já está tão… e tu sentes que tens de lutar contra isso todos os dias, em qualquer coisa que tu faças. Nesse trabalho que tens feito, no Instagram, deves receber montes de mensagens de pessoas que estão na tua situação e que dizem: é exatamente isso, obrigada por nos dares voz.
CO – Sim, acontece-me muitas partilhas de pessoas com deficiência. Eu levanto um tema e as pessoas aproveitam para partilhar coisas e eu aprendo imenso também. E surpreendo-me imenso também. Eu tenho 5 anos de cadeira, tenho amigos e pessoas que me seguem e têm 30/35, uma vida inteira, muito mais tempo em cima de uma cadeira do que de pé. Há pessoas que nasceram com uma deficiência e nem sequer andaram, e tem histórias que ainda me chocam, hoje em dia, e que eu penso como é que isto acontece. Para além das histórias que acontecem comigo. Sim, é um bocadinho dar a voz, mas nem todas as pessoas com deficiência vão concordar com tudo o que eu digo, porque cada um de nós tem as nossas vivências. E eu sei, e é importante de se dizer isto também: que a forma como eu reagi a tudo, não é a forma padrão, digamos assim, de as pessoas reagirem numa situação destas. E está tudo bem. Eu não sou nada de especial por isso. Não fiz nada para reagir assim. Como eu conheço muitas pessoas que reagiram bem, por exemplo, a um cancro, que ultrapassaram e outras que não, ou seja, cada pessoa é individual. Mas também te digo que, no início, quando isto me aconteceu, houve uma altura que para mim foi complicado, eu própria perceber como é que eu estava a reagir tão bem. Muitas pessoas à minha volta – não pessoas próximas e que me conheciam – ficavam um bocado, ui vi a Catarina na rua, ela parecia-me, será que ainda não lhe caiu a ficha. Como é que ela está a reagir assim. E eu ficava um bocadinho: será que eu estou aqui a camuflar algum emoção, algum sentimento. Toda a gente me está a dizer que eu não devia estar assim, e eu estou bem. Foi um bocadinho difícil para mim entender e, hoje em dia, entendo que foi a minha forma de reagir e não tenho de me culpar por isso. Mas, as minhas redes sociais é um espaço de partilha, sobretudo, e de eu depois, como tenho algum alcance já, partilhar as histórias que me chegam, para que as pessoas percebam que, realmente, existe a discriminação e existe este preconceito. E que muitas vezes as pessoas não fazem por mal, mas fazem, e então… uma pessoa tem de ser educada também.
SEXUALIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
SR – Até me recordo onde te vi, a primeira vez. Foi numa conversa com a sexóloga Tânia Graça e tu falavas dos mitos da sexualidade da pessoa com deficiência. Queres também falar um bocadinho disso, porque fizeste um post bastante completo sobre isso. Que é outra das coisas, ainda agora dizias: “ah, namoras, que sorte!”. Ou seja, parece que, lá está, nós introduzimos o conceito de que uma pessoa na cadeira de rodas, pronto, a tua vida acabou. Agora, ficas aí como um vegetal. Eu por acaso já trabalhei com pessoas com paralisia cerebral, em que o conceito vai dar quase ao mesmo e eles são pessoas perfeitamente válidas. Trabalham como eu, ainda são mais malucos para gozar a vida… mas lá está, uma forma diferente de pensar porque se calhar isso estremece-vos as estruturas e vêem a vida de outra forma. No meu ponto de vista é mais libertador até e as pessoas também achavam que eles não vão ter filhos, ou uma coisa assim. Eles têm filhos, casados, com filhos… e muito felizes, posso dizer isto. E portanto acredito que seja uma coisa importante também, para uma mulher de 30 anos falar.
CO – Claro, sem dúvida. Sim, a sexualidade é algo que eu costumo dizer que nem sequer é um tabu, eu acho que é algo que ainda nem sequer se põe em cima da mesa, quando se fala da pessoa com deficiência. Ainda ontem tive a oportunidade num webinar precisamente só sobre isso, sobre a sexualidade e pessoa com deficiência. E realmente é algo que sempre que eu falo nas minhas redes suscita bastante interesse. Porque é algo que não é falado. Também durante muitos anos a pessoa com deficiência sempre foi muito estigmatizada – ainda hoje é – muito escondida, ainda há muita gente que não consegue sair de casa, porque não tem acessibilidade, ou seja, muito retraída. Depois também há a questão das pessoas que crescem com a deficiência e são super protegidas pela família, que nem sequer lhes dão direito de se explorar, com o corpo, e se entenderem como pessoas. Isso leva a que haja muitos mitos… e ainda ontem no webinar falei de uma frase – não me vou lembrar do autor que estava escrito no powerpoint – mas era isto basicamente: quando se criam estas ideias, falaciosas, e mentiras que são os mitos. Coisas quase fantasiadas, geralmente é quando existe um grupo dominante que começa a pensar num grupo minoritário sobre de determinada forma e espalha essa mensagem realmente alguns mitos como nós sermos assexuados; pessoas com deficiências intelectuais serem hipersexuais ou terem uma sexualidade exacerbada, que isso não é verdade…
SR – Excesso de libido…
CO – Exatamente, excesso de libido. As pessoas com deficiência não poderem gerar descendência. Existem pessoas com deficiência que não podem ter filhos, como existem pessoas sem deficiência que não podem ter filhos. As pessoas com deficiência apenas gerarem filhos com deficiência… estes pensamentos existem. Ainda ontem, uma rapariga que conheço, que é autista, perguntaram-lhe se ela queria ser mãe, e ela disse, sim talvez, e “ah se vier com autismo?”. Como se fosse uma coisa, uma relação causal: tens deficiência, vais ter um filho com deficiência. Isso não existe. Outro mito… o facto de nós, se temos um companheiro ou companheira… aquele companheiro ser o nosso cuidador, ou ser um anjo na Terra como está connosco. E porque tem essa missão de cuidar da pessoa com deficiência. Isso também está muito enraizado. O facto de nos termos uma relação é porque tem de ser uma coisa séria. Nós não podemos ter relações pontuais, sexo casual… coisas como toda a gente. Não há essa desmistificação do tema da sexualidade, porque acho que muitas vezes – e isto é importante dizer – eu fui 27 anos uma pessoa sem deficiência. E sou há 5 anos uma pessoa com deficiência e eu sei que a forma como as pessoas olham para mim é diferente. Há muita gente que não sabe como me abordar. Até me quer abordar mas não sabe como. E quando eu estava de pé abordava-me a pé. Muitas vezes até me abordam pelas redes sociais, porque é menos cara a cara. E realmente como olham é diferente e isso está ligado, neste caso, à minha cadeira de rodas, mas noutro caso a outras deficiências. E é importante falar e desmistificar estes assuntos.
SR – Eu reparo que tu não falas só no teu caso, na cadeira de rodas. Tu falas disso, de se usar a palavra autismo como forma de, neste caso foi até uma forma política, de chamarem o Governo de autista. A senhora ministra que é autista… e de facto as pessoas… Eu acho que muita gente nos vai ouvir e vai dizer assim: ah, mas agora não se pode brincar com tudo ou falar de tudo. Não, meus caros! Não pode, se magoar o outro, é aí que a nossa liberdade acaba.
CO – Sim, é verdade.
SR – E também acho muito interessante tu falares lá… estavas a dizer, o companheiro que te vai ajudar…. tu não pedes ajuda, tu pedes acessibilidade. As coisas hoje em dia mesmo para as casas e tudo, e as casas de banho… isso tem de ser tudo feito para que uma cadeira de rodas se desloque. Eu costumo dizer isto: é como uma pessoa obesa não consegue entrar numa porta de uma casa de banho normal, às vezes, se calhar têm de alargar, ou a banheira mais baixa, ou coisas assim. A mesma coisa para a pessoa da cadeira de rodas.
“Se nós não somos vistos ninguém pensa nas coisas para nós“
CO – Claro, sim, sim. Exatamente. Tenho muitas amigas que dizem que só quando foram mães e tiveram de andar na rua com um carrinho de bebé é que começaram a aperceber das dificuldades que eu passava. E é o que elas dizem: eu posso pegar no meu filho ao colo e pegar no carrinho e subir um obstáculo, tu se estiveres sozinha o que vais fazer? Alguém que te vá pegar ao colo, ou então alguém tem de te fazer um cavalinho e pôr-te no sítio. A maior parte das vezes que eu preciso de ajuda é porque não tenho acessibilidade não consigo fazer sozinha. Uma rampa dá para todos nós, mas umas escadas não dão para mim. Eu não consigo, nós costumamos dizer que umas escadas para nós são paredes. Ter ali uma escada ou uma parede é igual, porque eu não consigo ultrapassar aquele obstáculo. E a acessibilidade é algo que devia ser pensado logo à partida. Obviamente que isto são… por exemplo, falando em construções. Eu compreendo, há construções de anos onde, se hoje em dia aqui em Portugal é raro ver uma pessoa de cadeira de rodas na rua, há uns anos muito mais. Se nós não somos vistos ninguém pensa nas coisas para nós. Mas nós muitas vezes não somos vistos porque não conseguimos sair, ou estar na rua. É um ciclo vicioso. A acessibilidade é algo que está a agora a ser falado e ainda há um caminho muito longo a ser percorrido, mas acho que todos nós, com ou sem deficiência temos esse papel. O próximo restaurante que vocês forem, o próximo museu que vocês forem, começar a reparar se tem acessibilidade, não só para pessoas com cadeira de rodas mas para pessoas surdas, cegas… há uma diversidade enorme, mas se nós formos trabalhando eu acredito piamente que as coisas podem ser universais e acessíveis a todos para que nós… eu sou uma cidadã como era quando andava, que trabalha, que contribuo, ou seja, eu quero aceder às coisas que acedia antes, da mesma forma, com os mesmos direitos.
SR – Sim, às vezes veem-se rampas que eu gostava de ver quem foi o génio que as fez. Porque nem com um carrinho de bebé é possível subir aquilo, quanto mais alguém com uma cadeira de rodas., sem ter de estar a pedir ajuda a alguém
CO – Isso também é outra coisa que é, fazerem a acessibilidade mas é uma acessibilidade falsa. Fazem uma acessibilidade e não consultam pessoas com deficiência para perceber se aquilo estava acessível ou não. Há rampas que é impossível uma pessoa subir ou descer. Mais valia não ter nada lá. São montanhas autênticas. Ou, então, casa de banho adaptadas, em que eu já fui, em que para eu lavar as mãos, o botão é para acionar com o pé. Aquilo é feito para quem? Aquilo é feito por alguém que anda e estava a pensar no que é que uma pessoa precisa, ou seja, não consultam a própria pessoa com deficiência, para ela dar uma assessoria e perceberem o que a pessoa precisa ou não. A essa falha também.
SR – Aliás, tu dizes mesmo, na tua página de Instagram, “Por cada vez que pensares que o meu maior desejo é voltar a andar, constrói uma rampa. Agradeço”. Acho que esta é a frase pedra de toque. Tu falas muito em Capacitismo. É um bocadinho do que temos vindo a falar, mas gostava que explicasses o que é isto do capacitismo.
“NÃO ESTOU A TENTAR ATACAR (…) EU PRÓPRIA JÁ FUI CAPACITISTA”
CO – O Capacitismo é a discriminação contra a pessoa com deficiência. É um termo, vem do inglês, “ableism”, e aqui em Portugal ainda não é muito falado, aliás não é quase nada falado; no Brasil já se fala bastante de capacitismo e, agora, aqui em Portugal já se começa a falar. É importante darmos um nome às coisas, porque o capacitismo é algo que se expressa em muitos sentidos, não é uma coisa direcionada. Lá está, o que falamos aqui do elogio com capacitismo, ou seja, és uma guerreira porque conduzes, só porque tens uma deficiência. Isto é Capacitismo. O facto de nós não termos acessibilidade é Capacitismo, porque nos discrimina, não nos permite ir a todos os locais; o facto de, por exemplo, nos infantilizarem, que é uma coisa muito comum. As pessoas falam comigo como se eu fosse uma criança, passam-me a mão no cabelo, apertam-me a bochecha… isto já me aconteceu em várias situações. E uma pessoa às vezes tem de se chatear porque as pessoas não têm noção. Eu sou uma mulher adulta, não sou uma criança. Só estou sentada numa cadeira de rodas. Isso é discriminação. O Capacitismo é transversal a muitas áreas da nossa vida. O facto de nós não termos, por exemplo, oportunidades de trabalho; ou quando nos dão oportunidades de trabalho, dão na perspetiva de caridade, quase… “ok, eu vou-te contratar porque tens deficiência. Vens para aqui e fazes o que puderes”. Não tem a mesma exigência que têm com uma pessoa com deficiência e isso também é discriminação. Está muito intrínseco, dentro de nós, noto que para mutas pessoas, sei lá… uma pessoa que me diga assim, “és tão bonita, nem reparei na cadeira”. E eu digo, isso não foi propriamente um elogio, isso é um elogio meio disfarçado, porque é que não posso ser bonita por estar numa cadeira de rodas. Só os feio é que podem estar numa cadeira de rodas; e o que é ser feio e o que é ser bonito. E as pessoas a primeira reação é: ah, tá bem, poças não fiz por mal, só te estava a elogiar. E eu não estou a tentar atacar, estou a tentar educar, no sentido de que todos nós somos capacististas. Eu própria já fui capacitista. Já estive a falar com um amigo meu, com paralisia cerebral, como se ele fosse um bebé. Primeira vez que o conheci, simplesmente porque ele falava de uma forma diferente da minha. E isto é extremamente capacitista, porque ele é um homem adulto, que se expressa de forma diferente da minha e eu estou a falar com ele como se ele fosse uma crianças. E nós termos esta perceção é importante. Não é um ataque. É uma educação. E quando estamos a falar e, ainda por cima se somos pessoas sem deficiência, a falar com uma pessoa com deficiência, temos que parar e pensar: ok, eu estou a ser capacitista, como é que eu posso desconstruir isso. No é com o sentido de atacar, é com o sentido de educar.
SR – Notas alguma diferença, mesmo assim, entre homens e mulheres que tenham deficiência. As mulheres poderão ser postas mais de parte do que os homens?
CO – Sim, noto. Eu acho que as mulheres… – obviamente que um homem poderá falar melhor da parte dele. Nós já somos mais vulneráveis no sentido que estamos mais expostas a alguns ataques. E uma mulher com deficiência muito mais, principalmente uma mulher que cresce com deficiência. Porque, nesse caso, acabam por não se conseguir… se lá… eu já era a Catarina antes de ter a deficiência. Já me entendia como mulher, já tinha tido relações, já conhecia o meu corpo… isto pode parecer ridículo, onde é que podiam tocar, ou não podiam tocar… Uma mulher que cresce com deficiência muitas vezes passa por muitas mãos, digamos assim,
SR – E é privada, muitas vezes, de se conhecer. Por causa de estereótipos criados
CO – Exatamente, sem dúvida. E isso faz com que sejamos mais vulneráveis. Há a questão da autoestima, da confiança. Mulheres que crescem com deficiência, muitas vezes, não conseguem construir uma autoestima e uma autoconfiança boa, e acabam por entrar em relações (sejam elas amorosas ou sem serem amorosas) às vezes algo abusivas, porque acham que não merecem mais, ou que têm de se ligar àquilo para ter alguém ao lado delas. Ou seja, e o homem acaba por, em algumas questões, não ser tão vulnerável nesse sentido. E depois também é a questão de, se nós mulheres já muitas vezes tens de lutar com a questão: “não é para me tocares”. Uma mulher com deficiência muito mais. A questão de empurrarem a nossa cadeira, sem nós pedirmos. Por exemplo, estou a vestir um casaco, e “deixa que eu ajudo”. E tocam. Tipo eu não preciso de ajuda para vestir o meu casaco. Essa vulnerabilidade toda, eu acho que é adensada com o facto de serem mulher, muitas vezes, sim.
SR – Como é que tu começaste a encarar, precisamente, isto quase que se tornou um propósito, uma missão. House algum clique, que tu disseste: eu tenho de realmente começar a pegar nisto que estou a viver e transformar isto em ensinamentos, em coisas que poderão vir a melhorar não só a minha vida, mas a vida de todos nós que sofremos com isto todos os dias. Com estes preconceitos, com estas limitações físicas, de não terem a acessibilidade. Quando é que isso começou?
CO – Eu acho que começou um bocadinho no Instagram porque eu ia partilhando lá coisas da minha vida: fotos e vídeos, coisas normais. E comecei a aperceber-me de alguma situações, principalmente quando falava da deficiência surgiam algumas duvidas, algumas partilhas. Quando comecei falar de alguns conceitos como o Capacitismo, começou a surgir outro interesse. E comecei a sentir necessidade de passar informação e de estudar cada vez mais e de passar informação não só para as pessoas com deficiência, mas muitas vezes para as pessoas sem deficiência, para que também possam vir para o nosso mundo. E entender a nossa realidade. E acho que foi aí que comecei a perceber que realmente era um assunto que não era falado, depois eu também acabo por falar das coisas com algum humor, porque é a forma como eu vejo e lido com as coisas no meu dia a dia. Algumas com mais humor, outras com menos humor. Mas, achei que era uma forma de transmitir a mensagem de algo que a sociedade vê como tão pesado, que é a deficiência, relativizando um bocadinho isso. E trazer as coisas para a realidade, para o humor. Não é gozar com a situação, de todo. É trazer as coisas com mais leveza. Assuntos com algum peso e com muita importância, mas com leveza. E senti que, comecei a ganhar voz a ter muita partilha com as pessoas e, antes da pandemia, eu sou embaixadora da Associação Salvador – que é uma associação que ajuda e promove iniciativas para pessoas com deficiência motora – e já fazia palestras em empresas e escolas e percebo a importância de passar a mensagem. Principalmente para pessoas sem deficiência estejam mais em contacto com o nosso mundo. Que pode ser um mundo de todos mas que ainda está à parte. É um nicho ainda muito à parte.
SR – E agora vais ser nutricionista. Começaste a colocar a questão da nutrição sobre rodas. Ou seja, alguns conselhos que tu achas que podem ser muito importantes para quem está numa cadeira de rodas… uma alimentação que tenha de ser feita, diferente… Vai-te dedicar mais a essa parte na tua profissão?
CO – Olha, não. Eu gosto muito da parte da nutrição desportiva. É o que eu gosto mesmo. Eu joguei vólei muitos anos, sempre gostei muito de desporto. Hoje em dia, com o confinamento, não, mas fazia crossfit, e gosto muito de desporto. É algo que eu gosto e sempre gostei de me manter ativa. E gosto muito da nutrição desportiva. Principalmente dos atletas. Não tanto do contexto de ginásio – apesar de estar a estagiar num ginásio, o que até me surpreendeu bastante. Mas gosto muito da nutrição desportiva e portanto quero especializar-me nessa área e quero ir mais para essa vertente. Mas, ainda há pouco tempo escrevi um artigo sobre isso – para uma empresa que me pediu – sobre nutrição e deficiência. Porque, obviamente, há algumas especificidades, principalmente deficiências mais profundas, ou deficiências que exijam uma nutrição que não seja por via oral, mas por via entérica ou parentérica, ou por sonda, etc. Portanto, existem especificidades, porque nos estamos menos ativos, eu posso fazer desporto, mas acabo por estar mais tempo sentada e, à partida, comparando com uma pessoa que anda e que seja ativa – porque há que pessoas que andam e passam o dia no sofá, portanto a diferença não é muita – nomeadamente nós temos mais cuidado com a quantidade que comemos. Porque o facto de estarmos acima do peso, a nós influencia muito nas úlceras de pressão, que são feridas que podemos fazer, de estarmos muito tempo parados. No facto das transferências, do carro para a cadeira, ou para a sanita, ou para o sofá ou para a cama, quanto mais pesada estiver mais difícil é. Portanto, tudo isso influencia e sem dúvida que a nutrição tem um papel fundamental nessas questões todas.
SR – Eu vi também, há pouco tempo, que tu fizeste a tua primeira viagem de carro sozinha.
CO – É verdade! Eu conduzo desde os meus 18 anos. Quando fiquei na cadeira, entretanto, uma história engraçada, que na altura não teve piada nenhuma. O meu irmão ia visitar-me no CRN, com o meu carro, na altura, e estava a entrar numa rotunda e deu um toque numa senhora que travou à frente dele. E basicamente estouraram os airbags no carro, foi num sensor, nem sabia que existia, partiu o vidro da frente, o meu carro era um Corsinha antigo e foi para a sucata. E portanto, na altura, não dava para conduzir aquele carro, porque não tinha mudanças automáticas. Fiquei sem carro e, por uma questão burocrática, de juntas médicas, e de atestado multiúso, eu ainda não comprar o meu carro com nós temos isenção de alguns valores, mas preciso de um atestado multiúsos… Então, estou à espera da junta médica para ter o meu carro. Mas resolvi adaptar o do meu pai. Já conduzo outra vez, só que geralmente quando conduzo para ir para o Ginásio, ou para as consultas, o meu pai vem comigo, porque depois vem fazer alguma coisa com o carro, e no outro dia fui a um jantar sozinha, a conduzir. É assim uma coisa simples, que eu fazia diariamente, durante muitos anos, mas que deixei de fazer e, quando estava a ir, comecei a pensar, ah e se furo um pneu, ah se a polícia me pára, ah se acontece uma coisa muito má. Ainda por cima foi à noite. Mas ,quando passou esse medo todo, foi aproveitar a viagem. Ainda por cima eu amo conduzir. Gosto mesmo muito. E lá está são coisas simples que uma pessoa volta a fazer e começa a dar valor. Quando voltar a conduzir todos os dias, já nem vou pensar nisso, mas agora é uma coisa que está muito aflorada.
SR – Agora, é uma sensação de liberdade muito grande.
CO – Isso sem dúvida! O facto de poderes ter um carro. E ter a sorte de ter um carro adaptado. Porque os transportes públicos não são muito acessíveis. As ruas não são acessíveis. O facto de teres um carro é uma liberdade muito grande.
SR – Gostaria de falar de como é que tu poderás… imagina que alguém que está a passar o mesmo processo que tu; já falaste aqui de como foi o teu processo; que conselhos poderás deixar. Nem sei se é diretamente para as pessoas, ou melhor para as pessoas que estão em redor da pessoa… como é que elas podem ajudar… tu já o disseste não acriançar a pessoa, garantir acessibilidade para ela se tornar mais autónoma, mas há mais algo que queiras deixar aqui como conselho?
CO – Para uma pessoa que esteja a passar por uma situação assim. Eu acho que vocês têm de respeitar o vosso tempo e não se compararem com os outros. Cada um de nos reage às coisas da forma que tem de reagir, mas também dizer-vos – porque acho importante – que não é o fim do mundo. De todo! Não é o fim do mundo. Não é uma situação fácil. Não é uma situação agradável. Depende muito do apoio à vossa volta. Mas não é o fim do mundo e é perfeitamente possível dar a volta a esta situação e ser igualmente feliz. As coisas são diferentes mas deixar aqui esta mensagem de otimismo, porque eu acredito piamente nisso. E as pessoas que estão à volta também respeitarem o tempo da pessoa e também mostrarem que há vida para além daquilo. Não tentarem – e eu sei que é difícil – não superproteger a pessoa, também não a meter numa redoma, não dizer “não vais conseguir, é melhor ficar em casa”; pensar em fazer alguma coisa e dizer “ah é melhor não, porque podemos passar por uma coisa constrangedora”, mas às vezes é pior não fazer as coisas, porque acabamos por ficar ali numa redoma. E não encerar a questão com pena ou com drama. Porque realmente isto só traz mais peso à questão. E também pensar, eu tenho muito este pensamento, e acho que cada pessoa reage às coisas da forma como tem que reagir, mas eu penso muito nisto: eu se tenho um problema, obviamente que é uma chatice, mas há solução? Podemos trabalhar nessa solução? Então vamos tentar trabalhar. Não há solução? Então, temos de reformular as coisas à volta para viver com aquele problema. E é chato! Há dias em que acordo e penso, ai que chatice, quem me dera dar um pulo da cama e estar dentro da banheira a tomar banho. Não é assim, as coisas são lentas e exigem mais paciência. É o que é. Não páro muito para ruminar no drama, percebes? Acho que é importante as pessoas à volta serem práticas no sentido de agilizar as coisas para não adensar o drama da questão. Mas sobretudo deixar esta mensagem otimista de que as coisas fazem-se de forma diferente. Não nos agarrarmos muito ao “eu gostava que fosse como era”. Não é! Portanto, seguir com um mindset diferente.
SR – E muito parabéns que estás a criar uma comunidade de pessoas que entendem o que lhes falta e onde querem chegar e que dás esse ânimo. Obrigada, Catarina!
CO – Obrigada, eu!
SR – Obrigada por teres aceite o desafio por nos contares a tua história. Sigam a Catarina, Espécie Rara Sobre Rodas, no Instagram e também no YouTube.