As cicatrizes da superação: como eu lidei com o cancro da mama

Cancro da Mama - Foto padrinan © Pixabay

A notícia chega sempre como uma “bomba”, que nos cai no colo. Como lidamos com o cancro da mama? Como lidar nós com essa notícia, vai depender muito de pessoa para pessoa. Este é apenas um dos muitos relatos que poderíamos partilhar. Como encarar as cicatrizes depois de duas mastectomias? Como nos olharmos ao espelho? Agradeço à Cidália por nos ter trazido estas suas palavras, que pretendem dar força e alento a quem esteja a passar pelo mesmo processo. Muita força!

O cancro da mama “é um problema de saúde pública, apesar de não ser dos mais letais, tem uma alta incidência e uma alta mortalidade, sobretudo na mulher (apenas 1 em cada 100 cancros se desenvolvem no homem). Actualmente, em Portugal, com uma população feminina de 5 milhões, surgem 6000 novos casos de cancro da mama por ano, ou seja 11 novos casos por dia, morrendo por dia 4 mulheres com esta doença” – dados da Liga Portuguesa Contra o Cancro.

Foto: Victoria Strukovskaya © Unsplash
Foto: Victoria Strukovskaya © Unsplash

 

Por, Cidália Alves

As marcas do nosso corpo têm uma história. As traquinices da infância, os desvairos da adolescência ou a boémia de adultos. A maior parte delas mal se notam, cresceram connosco, dissimularam-se. Porém, há aquelas que só pensamos em esconder, em não lembrar, pois a narrativa é outra. Não tem que ser assim. A história das cicatrizes, são um conto de superação.

Em 2014, a minha vida mudou e jamais voltaria a ser a mesma. Um diagnóstico para o qual não há preparação possível. Um carcinoma ductal multifocal grau 3. Ou seja, trocado por miúdos, cancro da mama, em estado avançado. O que senti, perguntam? O chão a fugir, a cabeça prestes a explodir, não sabia para onde ir, só desejava acordar de tal pesadelo. Lembro-me de ter uma sensação surreal, como se estivesse num corpo estranho.

O que me consumia, não era a doença, nem o que viria pela frente, nem tão pouco por mim. Corroía-me a alma, só de pensar no sofrimento que causaria a quem me rodeava. Sobretudo, aos meus pais e à minha filha de 9 anos. Significava mais uma provação que tinha que superar. Sou determinada e disse “vou pegar o touro pelos cornos” e andar para frente.

Devido ao quadro clínico fui submetida a uma mastectomia radical modificada à direita. Perdi a mama e fiz esvaziamento dos gânglios axilares. Seguiram-se os tratamentos: a quimioterapia, que quase me tirou vida; a radioterapia e hormonoterapia. O meu corpo mudou da cabeça aos pés.

Confesso-vos, neste novo corpo, nunca me senti diferente. Aceitei de imediato a mudança, sem pudores ou vergonhas. Não cobri a cabeça, a não ser para a proteger do frio ou do sol. Não escondi a minha cicatriz, ela era a prova da minha superação. Não deixei de ser quem era. Porém, percebi que nem todas as mulheres têm a mesma postura. Assumem a “derrota” e escondem o sofrimento, a mágoa de terem um corpo mutilado. O espelho é proibido, a nudez evitada, o olhar no chão e o medo de não serem amadas toma-as abruptamente.

Tantas vezes me apeteceu gritar, “NÃO FAÇAM ISSO, SOMOS GRANDES, SOMOS GUERREIRAS!” mas fiquei em silêncio.

Até hoje. Hoje, decidi falar.

A realidade é que a mudança não é somente física. Tornámo-nos num novo ser. A ansiedade de tudo pode voltar é brutal. Sofri isso na pele. Após os dez dias nos cuidados intensivos, em coma, por quadro de sépsis grave, devido ao 2º ciclo de quimioterapia, não conseguia dormir. O pavor de não voltar a acordar tomava-me a alma.

O maior receio é sempre uma reincidência do cancro. Aconteceu-me. Em 2018, ele volta. Mama esquerda. O golpe feriu-me de morte. Novamente revoltada com a vida. Mais um castigo. Vesti a pele da ira! Demorei a digerir. Sofri demais. O golpe do ano anterior ainda estava vivo. Um estudo genético realizado à minha filha, revelou ser portadora do gene BRCA1, síndrome de cancro hereditário da mama/ovário. A culpa empurrou-me para o lado sombrio. O centro do mal sou eu! A maléfica, de mãe falhada. Neste seguimento, em 2019, tive que submeter-me a uma histerectomia profilática.

O pior passou, mas as cicatrizes estão cá para lembrar. Não pela negativa, pelo contrário! A cada vislumbre do espelho, sorriem as cicatrizes da superação. Elas testemunham a salvação, a força, a persistência em continuar a ser mulher. Amar o meu corpo a cada milímetro. Sou fiel a mim mesma. Sou mulher e sou grande. Sou a pedra basilar para a Beatriz (nome da minha filha).
A vontade de fazer reconstrução nunca foi significativa. Fui à consulta, e expressei a dúvida, no entanto, aceitei a lista espera. Poderia desistir quando entendesse.

Verdade que, houve alturas, em que tive dúvidas. Tal atitude vivia em expectativas que não eram minhas. Falava a minha carência, a minha depressão, a vida que era madrasta. Murmuravam os motivos falsos na minha cabeça. Estive dividida, sim! Divida por outro alguém que não eu. Outro ser que estava perdido nos olhos dos outros.

Perentoriamente, NÃO! Fazer a reconstrução era destruir quem eu sou. Sou uma mulher de peito liso e não menos feminina, sou sensual, atraente, escultural. É assim quero continuar. O meu corpo não aceita a estranheza dos implantes porque não são meus.
É esta a minha atitude de vida. É o exemplo, a herança, legado, imagem de mulher que quero passar à minha filha. Saber viver para mim, não para os olhos de outrém. Amar é aceitar, é partilhar a dor, o sorriso, as lágrimas, o sofrimento e, sobretudo, a felicidade.

Sempre sonhei poder ajudar de alguma forma outras mulheres. A não viverem no silêncio, aprisionadas na perspetiva alheia, na vergonha, no estigma feminino mastectomizado. Ser exemplo, dar-lhes coragem para assumirem a diferença. Saber que é um enorme orgulho ter estas cicatrizes. Comunicam força, determinação em não ser derrotada. São testemunho dos obstáculos que ultrapassámos. É a vitória escrita na nossa pele.

Em outubro de 2019, esteve patente uma exposição fotográfica no IPO, Sweet October, por Ana Bee. A mostra abordava o estigma associado ao cancro da mama. Fiquei extasiada, pois, desejava estar ali representada.

Documentei fotograficamente todos os passos da evolução das cicatrizes, as mazelas da radioterapia até a pele estar saudável. Contudo nunca tive coragem de as mostrar publicamente. Não por vergonha de mim nem tão pouco por pudor, mas para não ferir a família. Talvez, eles sentissem desconforto. Um dia haveria de o fazer.

No dia 8 de março 2021, Dia Internacional da mulher, algo em mim despertou, no meu íntimo, e disse: “chegou a hora, vou publicar uma foto minha expondo as minhas cicatrizes”. Quero que todas as mulheres e homens mastectomizados possuam coragem de se amar de corpo inteiro. As nossas cicatrizes são troféus de provas vencidas, de lutas ferozes, de cairmos e termos a força de continuar. Sem lágrimas, sem mágoas, sem revolta. Acariciarmos o nosso corpo e termos orgulho de cada palmo das nossas marcas. Vestirmo-nos da sensualidade que refletimos no espelho e sermos exemplo de resiliência.

Cidália Alves
2021

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