Amores Plurais: a missão da psicóloga Marcela Aroeira

Marcela Aroeira_Amores Plurais

No MulheresEmViagem.pt, acreditamos no poder das histórias para inspirar e transformar. Nesta entrevista, conversamos com Marcela Aroeira, psicóloga, psicoterapeuta e criadora do projeto Amores Plurais, que propõe uma reflexão profunda e sensível sobre as múltiplas formas de amar e se relacionar no mundo contemporâneo.

Marcela fala sobre a origem do projeto, as suas motivações e os desafios de abordar temas tão transformadores. Prepare-se para mergulhar numa conversa que transcende fronteiras e nos convida a questionar padrões, acolher a diversidade e expandir o olhar sobre as relações humanas. Sobretudo sobre as relações não monogámicas.

Marcela Aroeira_Amores Plurais
Marcela Aroeira_Amores Plurais

“O projeto Amores Plurais foi criado em 2018 por Marcela Aroeira, psicóloga clínica e psicoterapeuta, e que traz uma visão adquirida durante o seu percurso académico e também a partir da sua própria experiência, com objetivo de viabilizar saúde emocional e bem estar para todas as pessoas que optem por ou queiram conhecer mais à respeito das relações não monogámicas consensuais, que queiram viver uma sexualidade livre de repressões e lutam pela equidade de género.”

MulheresEmViagem.pt: diz que tem “o Objetivo e desejo de ajudar as pessoas a amar e serem amadas”
E que “o mundo carece de mais amor”… a palavra Amor é notoriamente aqui destacada no sentido em que muita gente não ama e não se permite ser amada?

Marcela Aroeira: De certa forma sim. Pelo que tenho observado na minha experiência profissional, a noção de amor vem sendo muito deturpada pelo ideal do amor romântico. O amor tem sido visto como sinónimo de posse, ciúmes, co-dependência e por isso precisamos rever que amor é esse que estamos buscando nas nossas relações. É o amor do controlo ou da autonomia? Como podemos aprender a amar sem prender o outro? E são essas ideias que eu pretendo trabalhar no meu projeto.

MulheresEmViagem.pt: Qual o maior entrave que as pessoas colocam quando são confrontadas com a não monogamia?

Marcela Aroeira: A frase clássica, mais usada de sempre é: “Ah, eu acho muito bem, mas não conseguiria! Isso não é para mim!”. Observo que ao mesmo tempo que existe uma admiração por pessoas que ousam fazer diferente, tem também um medo muito grande de serem puxadas para essa nova realidade. E eu compreendo perfeitamente esse medo, porque é ir para o escuro, para um caminho completamente desconhecido… e principalmente pessoas que estão num casamento monogámico, ou numa relação monogámica de muitos anos, tem medo de perder aquilo que já foi construído.

A não monogamia convida as pessoas a saírem completamente da sua zona de conforto, então realmente pode ser assustador e a sensação ser mesmo de: “eu nunca vou conseguir dar esse passo!”. E tudo bem também se não QUISER dar, não há aqui nenhuma imposição nesse sentido!

MulheresEmViagem.pt: Qual o seu trabalho direto nas consultas e como o Amores Plurais é mais um “ramo” da sua missão?

Marcela Aroeira: O meu trabalho no consultório é facilitar o caminho das pessoas que me procuram, tanto em assuntos relacionados com a não monogamia, quanto relacionados a qualquer outro tema que faça parte da experiência vivida. Cada pessoa é um universo muito complexo e cheio de camadas atravessadas pelo social, pelo pessoal e pelas relações que nutre.

Então eu acompanho a jornada de pessoas que queiram se conhecer melhor e com mais profundidade, que queiram rever situações já vividas e compreendê-las melhor ou que queiram planear o futuro com as próprias lentes, guiando a própria vida de acordo com o que acredita.

Já o Amores Plurais é um projecto criativo e militante, aonde eu posso assumir várias facetas minhas e mostrar para as pessoas a minha visão de mundo, o mundo que eu quero construir e abrir caminhos para que isso seja possível coletivamente. Ali é onde eu me permito sonhar e acreditar que as coisas podem ser diferentes, que as relações podem ser construídas com base na autonomia, no respeito e nas redes de apoio.

Quero que através do projeto, as pessoas também tenham acesso a minha experiência, que talvez possa inspirá-las de alguma forma. E não digo isso no sentido de me achar melhor, mas no sentido de mostrar que outros caminhos, para além do que já nos foi apresentado, pode ser tomado e que apesar de todos os percalços, pode valer a pena!

MulheresEmViagem.pt: A repressão sexual que existe, o pouco à vontade… está mais ligado ao sexo feminino? Não fomos ensinadas a dizer o que queremos e o que não queremos… mas está a mudar.

Marcela Aroeira: Sim, sem sombra de dúvidas! Nós mulheres somos ensinadas desde cedo a obedecer, a não mostrar as nossas insatisfações. Em alguns casos não temos nem o direito de sentir raiva. Precisamos ser as boas meninas, comportadas, recatadas, que não pensam em sexo, que não se masturbam, que só servem ao prazer dos companheiros.

Então muitas vezes, mesmo gostando de sexo, aprendemos a fazer joguinhos de sedução, que não comportam um discurso real, mas sim trabalhado para satisfazer o imaginário masculino. Aprendemos a performar um comportamento. Agimos como se tudo fosse natural, mas muitas vezes não estamos sendo quem realmente somos.

Muitas de nós ficamos presas num mundo artificial, que serve aos interesses dos homens e não aos nossos próprios. Nesse sentido que eu digo que a monogamia é o braço direito do patriarcado, porque ela foi criada para controlar os nossos corpos e os nossos desejos.

MulheresEmViagem.pt: A comunicação é sempre importante, mas nas relações interpessoais e nos relacionamentos amorosos é a base de tudo. Numa relação não monogámica há uma maior abertura para se falar do que se quer e do que se sente?

Marcela Aroeira: Sim, porque aprendemos a tirar o medo da frente. Começamos a compreender que os conflitos fazem parte das relações, eles não são os vilões, muito pelo contrário. São necessários para assumirmos a nossa autonomia e não estar apenas num lugar submisso de ceder para outras pessoas. É importante percebermos as nossas diferenças e aprendermos a trabalhá-las numa relação. Muitas pessoas ainda confundem o comunicar um sentimento com o deixar de senti-lo.

E não precisamos deixar de sentir nada, todas as emoções são válidas, inclusive o ciúme, a vontade de controlar o outro, a inveja pelo o que outra pessoa consegue e você não. Entretanto podemos aprender a dizer sobre essas emoções e de uma forma que não ataque o outro. É escutando e acolhendo que conseguimos realmente nos comunicar.

Marcela Aroeira_Amores Plurais
Marcela Aroeira_Amores Plurais

MulheresEmViagem.pt: A sociedade alimentou (e alimenta) o “um bocadinho de ciúme até é bom”. Porque acha que defendemos isso como se só com ciúme provamos que gostamos mesmo do outro?

Marcela Aroeira: Essa ideia é muito reforçada pelo mito do amor romântico. Desde o século XIX, quando essa forma de perceber o amor ganhou força, os ciúmes passaram a ser interpretados como “prova de amor”. Nós aprendemos através desse mito que sentir ciúmes é sinónimo de sentir amor.

Alimentamos uma fantasia: “Olha lá como ele sente ciúmes de mim, sinal de que me ama mesmo!”. Entretanto a verdade é que essas emoções não estão conectadas. Os ciúmes podem estar ligados à insegurança, medo do abandono, a sensação de posse, de ameaça, à questões de vaidade e ego… que podem ter raízes distintas, mas em geral, tem a ver com fragmentos da nossa história de vida ligados à nossa infância.

Na primeira infância o ciúme existe como forma de autoproteção, é um instinto de sobrevivência, porque se os cuidadores se afastam a criança pode morrer. Quando esse impulso não é trabalhado de forma que a criança se sinta segura, essa sensação pode ser reproduzida na vida adulta e refletida nas relações que virão a seguir.

MulheresEmViagem.pt: Quando começou a perceber que o melhor para si seria ter relações não monogámicas?

Marcela Aroeira: O meu primeiro contato com a não monogamia aconteceu através de um documentário que eu assisti enquanto ainda morava no Brasil chamado “Amores Livres”. Esse documentário mostrava vários tipos de relacionamento, diferentes da monogamia e aquilo me chamou muita atenção.

A sementinha já estava plantada! Depois disso, foi saindo para dançar forró com as minhas amigas, que eu percebi que poderia me interessar por mais pessoas para além do casamento. Teve um outro lado também que me impulsionou a ir por esse caminho. Eu tinha muito medo de ser enganada, de ser passada para trás enquanto estava numa relação monogâmica.

Então o que eu pensei foi: “Se eu abrir essa possibilidade na minha relação, eu nunca vou ser enganada, porque a porta sempre vai estar aberta!”. E com a grande vantagem de que eu também poderia viver o que eu quisesse e sem culpa.

MulheresEmViagem.pt: Há tempos numa conversa com amigas, em que o tema eram as relações não monogámicas, alguém disse “mas eu nem tenho tempo para cuidar de uma relação como queria, como vou conseguir ter mais pessoas em relações íntimas e pessoais”?

Marcela Aroeira: Essa frase é muito comum, já ouvi diversas vezes! Entretanto é importante pensar que quando esse questionamento aparece, ele está sendo formulado a partir de uma perspectiva monogâmica e romântica, aonde depositamos muita energia e dedicação a um único relacionamento.

Quando falamos de não monogamia (principalmente numa perspectiva mais política), estamos propondo uma descentralização desse foco. Estamos propondo redes de afeto com atenções mais distribuídas, até para os projectos pessoais, que na monogamia às vezes são deixados um pouco de lado em prol de uma relação com uma outra pessoa.

Nós mulheres tendemos a fazer isso muito! Nos deixamos no canto pelo outro, que se torna o centro das nossas vidas (outra ideia do amor romântico que introjetamos e fazemos sem perceber!).
Quando conseguimos distribuir nossa atenção, as relações tendem a ficar mais leves, sem cobranças demasiadas, sem expectativas em uma única pessoa. Conseguimos construir vínculos em rede, assim como fazemos com os nossos amigos.

Aliás, deixo aqui essa questão: porque uma relação afetiva com componente sexual torna-se tão diferente das relações de amizade? Porque conseguimos ter várias relações de amizade e apenas uma afetivo/sexual?

Ah e preciso dizer também que nas relações não monogámicas existe a possibilidade de se ter mais de uma relação íntima e pessoal, mas não é de todo uma obrigação. Se o desejo for de se dedicar mais tempo de vida ao trabalho por exemplo, que assim seja! A diferença é que não tem uma terceira pessoa dizendo o que você pode ou não pode. É você quem decide!

MulheresEmViagem.pt: Um dos princípios das relações monogámicas – que nos é dito desde sempre – é que vamos encontrar O ou A tal… o grande amor da nossa vida. As relações não monogámicas mostram o contrário?

Marcela Aroeira: Sim, porque temos vários amores ao longo de nossas vidas. Essa ideia de que só existe um único grande amor, mais uma vez, herdamos do mito do amor romântico. Com quantas pessoas podemos ter trocas incríveis nas nossas vidas? E de diversas formas possíveis?
O que é ser o grande amor de alguém? Que pré-requisitos essa pessoa precisa preencher para estar à altura de levar esse título?

As pessoas nos encantam de formas diferentes. Cada uma delas pode acrescentar vida a um pedacinho de personalidade. Somos muito complexas para que uma única pessoa dê conta de tudo. E é tão libertador pensar que não precisamos dar conta de tudo o que tem a ver com uma única pessoa! Olha quanto peso nós deixamos de carregar quando mudamos a nossa forma de perceber as relações?
Em rede podemos nos apoiar mutuamente, podemos oferecer o que estamos dispostas a oferecer a cada pessoa e o contrário também. Quando uma pessoa não está lá, outra pode oferecer suporte e amor, temos abundância e não mais a escassez de podermos contar com uma única pessoa.

Marcela Aroeira_Amores Plurais
Marcela Aroeira_Amores Plurais