Mulheres no campo de refugiados do Uganda, por Vânia Maia

Vânia Maia Foto © Gonçalo Rosa da Silva - revista Visão

As “Conversas do Confinamento”* abordaram tantos temas como, inclusive, o empoderamento feminino de um grupo de mulheres, num campo de refugiados no Uganda. A entrevistada foi Vânia Maia, jornalista da revista Visão, que veio falar da sua reportagem “O Refugio das Guerreiras”, sobre as refugiadas no Uganda – que mereceu uma Menção Honrosa no Prémio de Jornalismo Direitos Humanos e Integração 2020. 

Eu sinto que não fiz justiça a estas mulheres. Tenho sempre essa mágoa de que não lhes fiz justiça porque elas mereciam muito mais. Porque de facto são histórias impressionantes“, Vânia Maia, jornalista da revista Visão.

*O que são as “Conversas do Confinamento”? Perante um novo confinamento geral, em Portugal, iniciado a 15 de janeiro de 2021, decidi começar uma série de entrevistas, de forma a dar a conhecer o trabalho de muitas mulheres, em várias áreas, mas sobretudo no trabalho em prol do outro, na saúde, sexualidade, no desenvolvimento pessoal, no auto-conhecimento e nas viagens, claro!

Entrevistas que trouxessem conhecimento e inspiração durante todo o confinamento.

Essas entrevistas foram o primeiro passo para criar o site Mulheres em Viagem, que é um site irmão do Viaje Comigo.

Mulheres em Viagem… porque a vida é uma viagem!

E quem sou eu? Sou a Susana Ribeiro, jornalista, comunicadora, viajante e fundadora do site de viagens Viaje Comigo e do Mulheres em Viagem. E a entrevistadora das “Conversas do Confinamento”.

Sejam bem-vind@s ao Mulheres em Viagem.pt – uma Comunidade de e para Mulheres Extraordinárias… como Tu!

 

ENTREVISTA TRANSCRITA NA TOTALIDADE:

“O Refugio das Guerreiras”

“O Uganda é o país africano que mais refugiados recebe. A esmagadora maioria são mulheres. Vistas como cidadãs de segunda categoria, enfrentam duras ameaças, mas são elas que estão a fazer nascer uma sociedade mais justa. Afinal, que força é essa?”

Reportagem publicada na revista Visão –  Texto: Vânia Maia; Fotografias: Lucília Monteiro

Menção Honrosa no Prémio de Jornalismo Direitos Humanos e Integração 2020

ENTREVISTA “CONVERSAS DO CONFINAMENTO”

Susana Ribeiro – Acho que para começarmos a conversa nada melhor do que tu nos dizeres como é que chegaste ao Jornalismo. Até me dizias há pouco que és de Relações Internacionais.

Vânia Maia – É, é verdade. O que me assenta bem nesta reportagem. Porque é uma reportagem sobre o Uganda. Portanto, tem esse lado internacional. Na verdade sou licenciada em Ciência Politica e Relações Internacionais e fiz uma Pós-Graduação nessa área. Depois é que fiz uma especialização em Comunicação e também uma Pós-Graduação em Ciências da Comunicação. E passei também pelo Cenjor – centro de Formação de Jornalistas. Que., na verdade, foi o que me levou à Visão. Porque eu fiz o curso e fui estagiar na Visão e a verdade e que ficando e, agora, já passaram uns aninhos desde que eu lá estou e já é a minha casa, a Visão. 

Susana Ribeiro – Em que faculdade é que estudaste?

Vânia Maia – Estudei na Nova, na Avenida de Berna. Somos vários de lá na redação e é também uma faculdade que tem também a sua aura e mística. Foi um bom sítio para se estudar. E fiz também Erasmus em Barcelona. Também foi uma experiência boa. Mas tive de estudar muito. Ao contrário da maior parte das pessoas que faz Erasmus, eu tive de estudar, a faculdade era exigente. Foi uma ótima experiência.

SR – O que estudaste em específico no Cenjor?

VM – O Cenjor tinha um curso de Formação Geral em Jornalismo. Era um curso que nos fazia passar pela televisão, pela rádio, pelo multimédia. Nós fazíamos um bocadinho de tudo e depois no fim havia um estágio que era naquilo que os professores achavam que nós teríamos mais talento para.

Eu confesso que quando fui para o curso eu achei… para mim era óbvio que ia para a rádio. Até porque tinha feito rádio. Até estava convencidíssima que ia para a rádio. Até que, no fim, disseram-me “olha, não, achamos que deves ir escrever. Que deves ir para a imprensa. E eu pensei, não nem pensar, eu não sei escrever e portanto foi assim um volte-face.

SR – A síndrome da impostora a funcionar. Ah eu não sei escrever..

VM – Totalmente! Foi mesmo isso. Fiquei assim um bocadinho assustada

SR – Isto é muito giro, porque, sabes… olha, se nos estiverem a ver agora jovens jornalistas (ou estudantes) muitas vezes o que nos dizem não é o que se torna a nossa profissão. Porque eu também entrei com o sonho de ficar na rádio. E, aliás, se me perguntares, hoje em dia, de que é que tenho mais saudades, é da rádio, porque é aquele bichinho, que nós costumámos dizer. E achei que ia fazer rádio a vida toda, mas fui para os jornais, depois para as revistas e depois para o online.

VM – Também começaste na rádio, que engraçado. Sim, a rádio tem uma mística é verdade.

SR – Já fizemos uma viagem juntas, às Maurícias

VM – Foi ao Egito!

SR – Ah, sim, desculpa que já me baralho! Entretanto, já não falávamos há muito tempo e, não sei como, apareceu-me a tua reportagem O Refúgio das Guerreiras… Há quanto tem saiu?

VM – Foi em 2019.

SR – E ganhaste um prémio

VM – Foi uma menção honrosa do Prémio de Direitos Humanos da UNESCO com este trabalho. Foi publicado em 2019, em julho.

SR – Como te surgiu a ideia de fazer esta reportagem?

VM – Isto na verdade, indo um bocadinho atras começou quando estive a fazer a cobertura do furacão Idai, que assolou a cidade da Beira, em Moçambique, em março de 2019. E nessa altura eu fiz alguns contactos com a AMI porque era uma das organizações que estava no terreno também a prestar apoio.

E isso foi um bocadinho circunstancial naquela altura, por causa do Idai, eu fui para Moçambique mas acabamos por não nos cruzarmos lá. E depois do regresso voltamos a contactar e falaram-me da possibilidade de irmos de conhecer in loco um dos projetos da AMI, no Uganda, num dos Campos de Refugiados do Uganda.

E foi assim que surgiu a oportunidade de ir até lá. Uma oportunidade que pareceu logo única – ia eu e uma fotojornalista, que foi a Lucília Monteiro – e comecei logo a pensar no que é que poderia ser o trabalho e por onde o trabalho poderia ir.

SR – Todos os campos de refugiados têm características muito particulares, no mundo inteiro, aqui também viste características particulares que te fizerem dizer “eu tenho mesmo de ir lá e tenho de escrever esta história”

VM – Aquilo que eu me apercebi. Fui fazer investigação para me aperceber para onde ia. O Uganda é o segundo pais africano que mais refugiados recebe e na altura em que eu lá estive eram cerca de 1,2 milhoes, hoje já são 1,4 milhões. Muitos do Sudão do Sul. E eu percebi que a esmagadora maioria destes refugiados eram mulheres. E percebi que no campo que eu iria visitar, o campo de Rhino, onde viviam 120 mil pessoas, também tinha essa especificidade. Ou seja, a esmagadora maioria das pessoas que lá estavam eram mulheres. E este é um tema que sempre me interessou, a igualdade de género e portanto eu percebi que este podia ser um dos ângulos para tratar o tema que era perceber como é que estas mulheres viviam num ambiente já de si que as fragiliza muito, sendo um campo de refugiados, mas ainda para mais com toda a agravante de estarem numa sociedade muito desigual.

SR – Elas eram do Sudão, portanto.

VM – A maior parte sim. E sobretudo todas as que aparecem na minha reportagem acho que são todas elas do Sudão do Sul que naquela altura o conflito estava mais agudizado e por isso chegavam mais pessoas do Sudão do Sul.   

Mas às tantas eu percebi que havia um conjunto e mulheres que lutava por uma sociedade diferente. E percebi que havia um movimento ali de quem tentava lutar contra as adversidades e tentava construir uma sociedade mais justa, apesar de todo aquela clima complicado, de estarem fora do seu país, de terem fugido.

A maior parte delas terem perdido muito familiares. E isso interessou-me e interessou-me colocar estas mulheres  num lugar não de vitimas mas de sobreviventes e de lutadoras. Apesar de, digo-te, eu não gosto nada da ideia de elas serem heroínas. E fujo um bocadinho de chamá-las de heroínas, porque acho que é muito injusto. Acho que é muito injusto que alguém tenha de ser herói para ter uma vida melhor. Não deve ser preciso exigir isso às pessoas para que elas tenham uma vida digna.

E acho que essa ideia de heroínas pode glorificar um bocadinho isto. E acho que não há nada para glorificar aqui, isto só tem de nos fazer pensar no caminho que falta percorrer em direção à igualdade de género. Portanto, confesso-te, fujo um bocadinho da terminologia porque está associado a isso, sabes.

SR – Para a nossa sociedade, é assim, nós temos polos, ou elas são consideradas umas coitadinhas ou são heroínas, não há uma coisa no meio, não é?

VM – Sim, é isso. E o que eu acho que não deve ser nem uma coisa nem outra. Acho que vítimas não são de certeza porque são sobreviventes, mas acho que exigir-lhes que sejam heroínas… Se calhar aqui elas não tiveram outra opção que não fosse essa de serem heroínas. Mas não devia de ser essa a sua única opção. Não quero glorificar. Com essa palavra parece que glorificamos que são heroínas. E não… é que terrível que têm de ser heroínas. Acho que é um bocadinho mas por aí. 

SR – Foi a tua primeira visita a um campo de refugiados?

VM – Sim

SR – Como é que foi o primeiro impacto?

NÃO HÁ ARAME FARPADO, HÁ ALDEIAS

VM – Os campos de refugiados são muito diferentes dos da Europa, por exemplo. Porque a política de integração do Uganda já foi até muitas vezes elogiada pelas Nações Unidas. Porque eles têm uma politica de integração que… imagina, à chegada, não vemos arame farpado, não vemos tendas, vemos aldeias. A aparência são de aldeias onde as pessoas vivem. No Uganda os refugiados são autorizados a trabalhar, que é algo que nem sempre acontece nos países que acolhem refugiados. É-lhes entregue um terreno à chegada onde podem construir e onde podem também cultivar, para terem algum tipo de autonomia, agora… claro que há problemas. Há problemas na cadência destes terrenos com os locais; há problemas porque os terrenos férteis já são poucos e portanto podem ficar com terrenos onde não conseguem tirar dali nada para a sua subsistência. Portanto, obviamente que há problemas e outros além destes que vamos falar, mas é uma politica de integração que muitas vezes é elogiada pelas Nações Unidas, por ter esta particularidade. De assimilar e integrar as pessoas no país.

SR – Isso é muito interessante, realmente. Eu imagino que não fosse um local muito grande, com os terrenos à volta, mas 120 mil pessoas…

VM – 85 quilómetros quadrados, portanto nós não conseguimos visitar tudo. Nós fomos a alguns setores de Rhino, aquilo é tão grande que tem nomes diferentes e área diferentes.

SR – Quanto tempo estiveram lá?

VM – Sei que não chegou a uma semana. Agora não consigo dizer os dias, porque a viagem demorava bastante. Tínhamos de fazer escalas, depois chegavas à capital e tínhamos de ir para Arua que é a cidade mais próxima de Rhino e depois de Arua é que íamos todos os dias de jipe para o campo. Era uma viagem de mais ou menos uma hora, Sempre a sacolejar. Era uma viagem muito interessante porque havia sempre muita coisa a acontecer. Porque circula-se muito. Muitas pessoas a pé, muitas pessoas de bicicleta, muitas pessoas de mota,  as carrinhas de caixa aberta cheias de pessoas que usavam como transporte público no fundo. Tudo se compra e tudo se vendia à beira da estrada, desde o carvão a lenha e portanto era assim sempre… era uma viagem de absorção total! A paisagem, os campos de tabaco, que é uma das principais exportações do Uganda e era quase como se estivéssemos a entrar numa outra dimensão, digamos assim, todos os dias que fazíamos aquela viagem.

SR – Perguntava-te há pouco, qual foi o primeiro impacto, porque eu imagino que…. há quantos anos esse campo existe… foi criado, tu sabes?

VM – Eu creio que ele foi criado ainda nos anos 80 e depois tem vindo a ser ampliado. Nós fomos visitar uma área nova que tinha sido inaugurada em 2017 – nós estivemos lá em 2019 – que era uma espécie de aldeia modelo, digamos assim, porque era tudo muito recente. Com as casinhas mito arranjadinhas, com os canteiros, portanto o primeiro impacto foi isto não parece exatamente um campo…

SR – Havia escolas, hospital…?

VM – Sim, havia escolas, clínicas… claro que às vezes são a quilómetros de distancia de algumas aldeias. Há pessoa que têm de caminhar quilómetros para ir ao centro de saúde. E à esperas, porque há muita gente. Portanto, há isso tudo não quer dizer que seja suficiente, na medida ideal. Mas há.

SR – Foste visitar alguma das escolas. Tenho sempre curiosidade para ver como no meio do caos, se podem criar comunidades. Pessoas que ficaram sem nada, saíram do seu país com uma mão à frente e outra atrás, provavelmente com um saquinho de pano com pertences, provavelmente nem é pertences, deve ser comida e coisas para sobreviver na viagem e depois chegam a um sítio e têm essa resiliência e essa resistência de avançarem com a vida. E que levam muitas vezes as crianças atrás e as crianças vão para a escola. É uma coisa que, para nós, que temos tudo mais ou menos organizado – apesar de estarmos a viver uma pandemia agora – isso parece-nos assim uma coisa tão de filme, não é? Como é que eles se organizam?

VM – Por acaso, as escolas na altura em que nós lá estivemos estavam de férias. Não havia aulas. Mas a educação é um tema absolutamente fundamental sobretudo junto destas guerreiras com quem nós falamos. Até porque a educação – e há total consciência disso – é a forma, muitas vezes, destas mulheres ganharem autonomia, conseguirem tornar-se independentes, conseguirem aprender um ofício que lhes permita serem auto-suficientes. Portanto, a educação é uma das batalhas de muitas destas mulheres com quem falamos. Até porque há uma taxa de abandono escolar elevada, muito dentro do sexo feminino, muito também devido ao casamento infantil, que também era sempre uma questão que nos era muito referida e, por isso, a educação é uma preocupação grande e, em certa medida, é um problema, porque é difícil conseguir que as crianças terminam o seu ciclo de estudos, é difícil conseguir que as raparigas não sejam retiradas da escola para irem ter uma vida doméstica, digamos assim. E portanto essa é uma das batalhas importantes. Nós, no terreno, tivemos o apoio da AMI, mas também da Ceford que é organização local parceira da AMI que foi fundamental para nos movimentarmos  no campo e também para não gerarmos muita desconfiança. A câmara fotográfica, por exemplo, era algo que gera muita desconfiança. Estamos a falar de pessoas que fogem da guerra, algumas têm medo de serem identificadas. Tinham que perceber bem quem nós erramos e o que estávamos ali a fazer. E nesses nossos percursos a questão da educação era uma coisa sempre referida e do papel que ela podia ter na vida das crianças e em particular das meninas, das mulheres.

SER VIOLADA QUANDO VAI BUSCAR LENHA

SR – Qual era a percentagem de mulheres nesse campo?

Vânia Maia – Na altura em que eu lá estive era cerca de 60 por cento, eram mulheres e crianças. Creio que estavam no mesmo grupo. E era impressionante e notava-se até no espaço público percebíamos que havia mais mulheres. E as mulheres trabalham muito. Ou seja, vemos muito as mulheres a carregarem a lenha, a carregarem água, vê-se que são uma força muito importante e depois há também problemas associados a isto. Um dos momentos mais perigosos para esta mulheres é ir buscar lenha, precisamente. Não só porque e um bem escasso e caro, e há quem esteja a impedir de recolher, sejam locais, sejam outros refugiados mas também é uma oportunidade – porque elas têm de afastar um bocadinho – para as tentativas de violação. Que era um dos problemas que nos falaram muito no campo. Das violações. E essa é apontada como uma das situações de risco, que era ir buscar lenha.

Susana Ribeiro – Mesmo não querendo usar o adjetivo de heroínas ou guerreiras, do que é que estamos a falar aqui, porque as mulheres são vistas – e imagino que a cultura no Uganda seja um bocado parecida com a do Sudão – mas as mulheres são vistas como cidadãs de segunda, ou seja, não sei se têm os mesmo direitos. Como funcionam as coisas?

VM – Sim, totalmente. São umas cidadãs  que não estão no pleno das suas capacidades e dos seus direitos. Uma forma interessante de ver esse drama, por exemplo, uma das pessoas com quem falei, a Susan Grace Duku, que não só trabalhava numa farmácia do centro de saúde do campo como tinha aberto uma boutique numa das ruas mais movimentadas de Ofua, onde ela vivia, e ela tinha cerca de 10 pessoas a seu cargo, além dos filhos, tinha alguns irmãos, tinha a avó, portanto ela era a responsável por aquelas pessoas. Tinha 33 anos. E ela é uma grande ativista. Ela representa as mulheres nas instituições do campo e também estava integrada numa instituição mais de nível nacional, no que diz respeito aos campos de refugiados. Ela é também do Sudão do Sul. E, por exemplo, ela sofria retaliações devido a essa posição. Às vezes, havia reuniões no campo das instituições decisoras e ela não era chamada porque sabiam que ela ia falar dos problemas das mulheres e isso não interessava. E pior do que isso havia também episódios de intimidação. Nem sempre ela dormia na cada dela, porque tinha medo. Porque já tinha acontecido irem à procura dela à noite. E ela sofria episódios de intimidação por ter essa postura de defender as mulheres, de tentar incentivá-las a ter um emprego, a serem independentes. Portanto, a conquistarem algum poder sobre si, sobre o seu destino e sobre os seus filhos. Porque a educação também faz muita diferença quando precisam de cuidar de um filho que estás doente para perceberem o medicamento que têm de dar, a dose correta do medicamento. Também para perceberem que é bom para o filho que é bom continuar a estudar, não sair da escola. Isto depois tem um efeito multiplicador que é tremendo. E portanto, a Susana fazia esse trabalho apesar de todo o outro trabalho que ela tinha, e este da representação das mulheres era probono.

Ela foi do Sudão do Sul. Foi sem saber do marido. Tinha perdido o rasto do marido que curiosamente era jornalista. Era um jornalista critico do regime e ela perdeu totalmente o contacto com ele, quando decidiu fugir com os filhos e ir para o Uganda.

SR – E nunca mais teve noticias do marido?

VM – Enquanto eu estive lá e depois voltei a contactá-la, ela continuava sem saber nada dele.

EMPODERAMENTO FEMININO DENTRO DO CAMPO

SR – Dentro do campo de refugiados havia reuniões para informar mulheres em que elas podiam ter atividades económicas, empregos, para serem autos-suficientes, para dinamizar entre as mais novas a importância da educação…

VM – A Ceford que é a organização que eu conheci melhor e que tem programas mesmo dirigidos às mulheres, fazem um trabalho incrível. Tinham um por exemplo que era ligado à agricultura. E eu entrevistei uma rapariga que estava num projetos desses Era costureira no Sudão do Sul, não pôde levar a sua máquina de costura e teve que encontrar outra profissão. Até porque, lá está, tinha filhos e não tinha o marido com ela. Estava neste programa, a aprender a criar galinhas, vendê-las, vender os ovos e daí tirar algum rendimento. Mas é muito mais do que isso, porque há desde programas mais práticos, desta formação profissional, como também há fóruns de discussão para gerar este debate, para criar essa consciência dos seus direitos. E isso é um trabalho incrível e que dá resultados a médio e longo prazo. Também o projeto da AMI, em concreto, é sobre saúde reprodutiva, que era um trabalho que se fazia muito sobretudo junto dos jovens, claro. E muito formando os jovens para  que eles fossem falar com os seus pares. Que acaba por ser muito eficaz para ter mudanças de comportamentos. Ser uma conversa entre eles. E aí curiosamente os homens têm um papel muito importante porque eles decidem muito o que é a saúde reprodutiva da mulher. Porque às vezes não lhe permitem que vá ao médico, às vezes não permitem que tomem contracetivos. Um dos técnicos da Ceford dizia-me que um dos mitos comuns é que a contracepção impede ter filhos para sempre. E daí eles tinham que quebrar esses mitos. Ou achar-se que a menstruação é sinal de maturidade sexual. E portanto havia uma série de ensinamentos que era preciso dar e uma série de mitos que era preciso desconstruir.  E o projeto da AMI que acompanhamos era focado na saúde reprodutiva.

SR – Deves ter apanhado histórias incríveis; algumas menos boas. Haverá alguma que possa partilhar connosco mais representativa do trabalho que fizeste?

VM – Eu sinto que não fiz justiça a estas mulheres. Tenho sempre essa mágoa de que não lhes fiz justiça porque elas mereciam muito mais. Porque de facto são histórias impressionantes. Eu já falei da Susan e ela marcou-me imenso. Quando me deu a entrevista ela devia estar nas Nações Unidas, em Nova Iorque, porque tinha sido convidada para falar numa conferência sobre a vida dos refugiados do Sudão do Sul. E os EUA tinham-lhe negado o visto e ela não pode ir. Ela falhou esse que seria um momento importante na vida dela. Ela queria participar, queria dar o seu testemunho. E negaram-lhe o visto.

SR – Lembraste se lhe deram alguma razão para negarem o visto? Estavam com medo que fosse mais uma emigrante…

VM – Sim, é isso. Mas ela nem percebeu bem, porque foi um processo que se arrastou durante muitos meses. E quando vinha falar comigo, vinha da cidade e de ter a confirmação, de que lhe tinham negado o visto. Sem ela perceber exatamente o porquê. Uma das razões que invocaram e que ela me disse foi que acharam que ela não teria conhecimento suficiente sobre o assunto para o convite que ela diz que tinha.

Mas, além da Susan que era uma força da natureza. Por exemplo, a Vivian Amuna, uma jovem de 24 anos, tinha vivido a vida toda em Rhino. Portanto, a mãe dela fugiu do Sudão do Sul e ela nasceu naquele campo e passou toda a vida ela. Aliás, ela dizia-me  que não sabia como a vida dela poderia ser diferente porque ela só conhecia aquela realidade. E o que é incrível é que ela co-fundou uma organização que tentava fomentar a convivênncia entre as várias etnias do Sudão do Sul, que em casa se degladiavam, estavam em guerra, e que depois se reencontravam na fuga e reproduziam esse modelo de violência. Ela e outros jovem tentavam fomentar esse dialogo entre todas as etnias do Sudão do Sul e faziam-no muito através do desporto e através da arte, música, teatro, cinema…

SR – Entre eles próprios têm de chegar a uma boa convivência dentro da comunidade que criaram…

O RADIALISTA ATIVISTA E PRÓ-FEMINISTA

VM – As pessoas estão em guerra no Sudão do Sul e quando fogem acabavam por se reencontrar ali e por reacender essas rivalidades. E este projeto era muito contra isso e resolver esses conflitos.

Outro jovem que eu conheci lá e, neste caso, a reportagem fala sobretudo de mulheres – e até na Ceford, a responsável dos projetos era uma mulher, a Lillian Obiale – mas também conhecemos uma história muito enternecedora de um jovem que fugiu do Sudão do Sul, o Franko Emmanuel, que tinha 26 anos e que no Sudão do Sul ele tinha um programa de rádio. E quando foi para o Uganda percebeu que podia ser artista e tornou-se cantor, rapper, dentro do campo. Às tantas, ele dava concertos, o que só por si já é interessante mas mais do que isso as letras das cações dele eram muito à volta da violência contra as mulheres.  

O pai dele teve uma fase da vida que era alcoólico e ele assistiu a episódios de violência doméstica em casa e ele sentia que tinha de estar ao lado das mulheres e resolveu usar a música para isso. As pessoas cantavam a plenos pulmões as canções dele que são contra a violência contra as mulheres. A Susan adorava, era uma grande fã dele. Dizia-me que o que ele faz com a juventude é fantástico. Porque põe toda a gente a cantar que se devem tratar bem as mulheres, que não se bate nas mulheres. E também foi muito bom conhecê-lo e perceber o percurso a vontade dele de fazer a diferença. 

Lembro-me de ele me dizer que é muito difícil manter os sonhos vivos quando vivemos num campo de refugiados. Ele dizia-me que também para ter sonhos é preciso ter liberdade. E acho que ter consciência disso é muito importante.

SR – Acho algo engraçado/curioso… que disseste aí. Nós criamos estereótipos. E se calhar achamos que toda a gente que está num campo de refugiados é um, e perdoem-me a expressão, Zé ninguém. Pessoas que fugiram e que ah não tinham nada então… e não nós estamos a falar de pessoas que fugiram à guerra, porque o país estava muito mal e lá está trabalhavam em rádios, há médicos, há professores, há todas as profissões. Não sei se era o caso desse, mas noutros campos de refugiados nós vamos sabendo que sim. Também tiveste noção disso, que havia pessoas que tinham uma vida boa no país e  tiveram de fugir.

VM – Acho que é muito importante fazeres referência a isso. Porque acho que há uma grande confusão em relação a isso. E de facto há esse estereótipo. E, as pessoas que fogem da guerra, podíamos ser nós perfeitamente. E normalmente quem consegue fugir é quem tem alguns meios para isso. Porque quem não tem meios nenhuns fica lá. Morre lá. Quem tem alguns meios, é quem ainda consegue sair. Porque muitas vezes é preciso pagar e pagar muito para conseguir fazer aquelas viagens, para conseguir passar aquela fronteira, para conseguir que alguém faça o transporte, para conseguir que também leve familiares. Para conseguir levar alguns bens. Aquele história… e na Europa diz-se isso, os refugiados têm telefones. Pois têm telefones. Porque eram médicos, tinham as suas vidas, trouxeram o que puderam e trouxeram o telefone até para entrarem em contacto com a família. Imaginem o que nós faríamos se eu tivesse agora que fugir da guerra, o que é que eu faria. Também levaria o meu telefone…

SR – E isso são estereótipos também, lá está, muito associados a países africanos, médio oriente ou ao extremo oriente, se calhar se fosse daqui nós não estranharíamos tanto mas acho que é importante dizermos isto.

VM – Sim, mas é preconceito. Uma das pessoas que entrevistei lá, era uma empresária no Sudão do Sul. Tinha um restaurante de sucesso e quando fugiu o que ela conseguiu levar foram duas mesas do restaurante e abriu um restaurante no campo de refugiados. Que funcionava num pré-fabricado, com tendas do ACNUR à volta. Mas ela voltou a abrir um restaurante ali, claro que não com as condições que ela tinha no Sudão do Sul e com as duas mesas que ela carregou apesar de ter ido a pé, mais de uma centena de quilómetros. Ou seja, é impressionante.

SR – Ou seja, ela literalmente fez a parte dela. Que foi chegar ao sítio arregaçar mangas, dentro de uma comunidade de pessoas que fugiram à vida, tentar manter a normalidade. Sentiste isso, que se tenta manter uma normalidade?

VM – Sim, senti. Nós temos sempre esse choque, essa inspiração, que é perceber como o ser humano tem essa capacidade de se adaptar ao que existe, ao que é possível. Eu acho que também não se deve glorificar isso, lá está. Aquela coisa de: ah conseguem ser felizes assim. As pessoas fazem o que podem e não é suposto ninguém ser feliz assim. Quer dizer, as pessoas merecem mais, as pessoas têm direito a mais. E não queria glorificar isso. Agora, o que há ali é uma resiliência incrível. Uma resistência incrível. Uma sobrevivência incrível. Não vou nada com essa ideia dos coitadinhos. Aquilo é gente com uma força que é impressionante.

SR – E notaste ainda mais nas mulheres, porque lá está a condição delas será sempre mais vulnerável, nestas circunstâncias e situações. Com que ideias é que tu saíste de lá para escrever a tua estória. Houve alguma coisa que tu disseste… nem deves ter conseguido pensar bem. Por onde é que eu vou começar a contar esta estória. Porque disseste há pouco que achas não fizeste justiça a estas mulheres, mas eu acho que sim. O que é que para ti, como portuguesa, europeia e mulher, foi mais impactante ao ter esta experiência?

VM –  Aquilo que falaste há pouco da questão do estereótipo é para mim muito importante. Era importante que o meu texto, que a minha reportagem, que a nossa reportagem, com as fotografias da Lucília Monteiro, não contribuísse para isso. Eu queria mostrar pessoas reais. Não queria mostrar esse estereótipo, de ficar só pela superfície. Pessoas que estão ali e que têm inquietações iguais às nossas.

SR – Pessoas como nós…

VM – Que se ocupam dos filhos e que querem que os filhos tenham uma vida melhor e que querem que as filhas tenham oportunidade que elas não tiveram. E portanto marcou-me muito como portuguesa, europeia, mulher, a questão de que nós temos as nossas batalhas, e temos a desigualdade salarial – 16 e tal por cento – mas ali a batalha está a anos de luz, não é? E o que falta fazer é hercúleo. E sentir que eu vim-me embora para o meu conforto e aquelas mulheres continuam lá e outras vão e continuarão a lutar por essa sociedade mais justa, que é aquilo que elas tentam fazer – aquelas com quem eu estive e com quem falei – num ambiente tão adverso. E que mesmo assim estão a tentar, e a conseguir, em muitos casos, construir um mundo melhor, e se naquele contexto elas conseguem fazer aquilo, nós também temos todos de fazer melhor.

SR – Sem dúvida… Muito obrigada pela entrevista. Foi ótimo ter feito esta viagem jornalística.

VM – Nós não tivemos muito tempo para turismo no país, porque estivemos focadas no trabalho no campo de refugiados. Não ficamos a conhecer muito bem o Uganda. Passamos pela capital, Kampala, passamos pela floresta onde foi descoberto o Zika. E demos uma voltinha no lago Vitória que é o maior lago de África, que tem o tamanho da Irlanda.

Deixa-me só dizer que apesar de o Uganda ser dado como exemplo (no que toca a integração dos refugiados) há problemas! Houve recentemente eleições – dia 14 de janeiro – o opositor do presidente Musseveni, que está no poder desde os anos 80, esteve em prisão domicliária. Houve um blackout da internet durante um tempo também por causa das eleições. Há muitas questões para resolver.

No final do mês passado, uma feminista, conhecida no país, a Stella Nuanzi, se refugiou no Quénia. Já esteve detida várias vezes. Agora, por causa das eleições o companheiro dela também foi detido e torturado e portanto ela refugiu-se no Quénia, no final do mês passado.

E o principal opositor do presidente Musseveni curiosamente é também cantor. É o Bobby Wine – nome artístico – alem de deputado é rapper e é o principal opositor do presidente. E que esteve detido também agora na sequência das eleições.

Termino com uma nota mais positiva. As pessoas podem ter curiosidade para perceber mais sobre o Uganda. Que é um cineasta ugandês – um filme dele foi recentemente apresentado aqui em Lisboa – que é o Nabawana. É mais fácil se pesquisarem em wakaywood. É um pouco controverso porque há quem diga que há ali a apologia da violência. É um movimento cinematográfico do Uganda que está a dar que falar. Portanto, fica a curiosidade deste Tarantino do Uganda, por assim dizer.

SR – Muito obrigada, Vânia!

– FIM – 

Quem é Vânia Maia? Os bons jornalistas aceitam o desafio de partirem à descoberta e, mesmo que não encontrem todas as respostas, fazem as perguntas certas. Tudo começou aos microfones de rádios locais mas, hoje, é na imprensa que dá voz aos protagonistas das histórias com as quais se cruza. Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais, passou por Barcelona no âmbito do programa Erasmus. Frequentou o curso de Especialização em Jornalismo do CENJOR, pós-graduou-se em Relações Internacionais e, também, em Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias, na Universidade Nova de Lisboa. Em 2016, foi júri da primeira fase do mais prestigiado galardão de jornalismo ibero-americano, o Prémio Gabriel García Márquez. É uma das autoras convidadas do livro Tudo Por Uma Boa História (A Esfera dos Livros, 2017), que revela os bastidores de reportagens. Em 2019, foi distinguida pelo Alto Comissariado para as Migrações com o prémio de Imprensa Escrita e, também, com o grande prémio Diversidade Cultural, ex aequo. No mesmo ano, a Liga Portuguesa Contra o Cancro atribuiu à reportagem “Chernobyl, Onde Vivem os Fantasmas” o Prémio de Jornalismo de Imprensa. Em 2020, o Prémio de Jornalismo Direitos Humanos & Integração, uma iniciativa da Comissão Nacional da UNESCO e da Secretaria Geral da Presidência do Conselho de Ministros, atribuiu uma Menção Honrosa à reportagem “O Refúgio das Guerreiras”. É uma das vencedoras da segunda edição das Bolsas de Investigação Jornalística atribuídas pela Fundação Calouste Gulbenkian. Cada pessoa é uma história que merece ser contada. É essa convicção que alimenta a sua paixão pelo jornalismo. 

Vânia Maia Foto © Gonçalo Rosa da Silva - revista Visão
Vânia Maia Fotografia © Gonçalo Rosa da Silva – revista Visão