É advogada mas decidiu dedicar-se a 100% à Educação Menstrual. Bárbara Neves conta-nos como mudou de vida: “aos 26 anos, numa encruzilhada de porquês da minha vida profissional – e pessoal -, descobri o mundo da Educação Menstrual, da saúde feminina e dos ciclos menstruais, e resolvi deixar a minha carreira de advocacia por este universo de temas”. E deixa-nos este texto, depois de uma passagem em Cabo Verde, e uma experiência que a despertou para várias questões.
Texto de Bárbara Neves*
Ilha de Santiago, Cabo Verde, Julho 2023
Cabo Verde veio para mim como um murro no estômago e uma lufada de ar fresco ao mesmo tempo.
Aos 26 anos, numa encruzilhada de porquês da minha vida profissional – e pessoal -, descobri o mundo da Educação Menstrual, da saúde feminina e dos ciclos menstruais, e resolvi deixar a minha carreira de advocacia por este universo de temas.
E ao mesmo tempo que decidi mergulhar neste mundo de conhecimento e iniciar a minha formação na área, percebi que primeiro precisava de me conectar comigo mesma, fazer uma pausa da agitada Lisboa, e ir em busca das minhas origens.
Cabo Verde era uma viagem já há muito pensada por mim, por diversas razões, mas que a vida ainda não me tinha proporcionado o privilégio de a realizar, pois tinha-a bem guardada para o momento exato em que precisava dela – agora.
E de repente, marquei o voo com poucas semanas de antecedência, pus uma mochila às costas e embarquei sozinha para a maravilhosa ilha de Santiago.
Procurava umas semanas para limpar a mente e descansar a cabeça, mas Cabo Verde deu-me muito mais. Enquanto em casa estudava os temas da Educação Menstrual, vim a aperceber-me da realidade de muitas outras pessoas em todo o mundo e a sua experiência com a menstruação. E então, decidi pegar num caderno e numa caneta, e falar com todas as diferentes mulheres com quem me cruzei durante a minha estadia, desde a Serra Malagueta até ao norte da Ilha de Santiago, a vila pescatória do Tarrafal.
No Tarrafal, acabei por ficar mais tempo do que esperava. Aqui, a tranquilidade das pessoas com tão pouco faz-nos levantar voo para uma simplicidade e paz de alma, nesta terra tão maravilhosa e cheia de coisas para dar.
Porém, este “tão pouco” significa também a falta de recursos que tomamos por garantidos, como, por exemplo, uma casa de banho com as condições higiénicas necessárias, para a menina ou mulher menstruada, os recursos suficientes para comprar coletores ou absorventes menstruais, ou o conhecimento geral sobre o seu corpo.
Ao longo da minha estadia, tive a oportunidade conhecer várias mulheres locais, de diferentes contextos sociais, às quais questionei sobre a sua relação com a menstruação e conhecimentos sobre o ciclo menstrual.
Para muitas, a preocupação reside sobretudo em esconder a menstruação, e ter os recursos necessários para conseguir comprar uma caixa de pensos menstruais, que têm de saber gerir ao longo de cada ciclo.
Em Cabo Verde – como em quase todas as partes do mundo, na verdade – a menstruação ainda é vista como um tabu, cheia de mitos e pré-conceções sem fundamentação científica, assim como é a utilização de coletores menstruais ou absorventes internos que implicam a penetração (como, por exemplo, o uso dos tampões).
De entre as respostas obtidas, não há dúvida que os pensos higiénicos descartáveis são a opção de eleição, muitas das vezes tendo de ser racionados ao longo de cada período, devido ao seu preço.
Por cá, os pensos reutilizáveis já são falados, mas ainda olhados com alguma desconfiança pela maior parte das mulheres – especialmente aquelas que vivem em localidades mais isoladas -, devido ao facto de implicar um confronto direto com o sangramento e a menstruação em si, mas sobretudo, devido à falta de condições para proceder à sua limpeza, uma vez que nem todos têm acesso ao saneamento básico, água e eletricidade.
Quando questionadas sobre tampões, muitas mulheres se espantam com uma cara horrorificada, enquanto soltam uma gargalhada nervosa de “nem pensar”, o que mais tarde vim a perceber que se daria ao facto de considerarem isso algo impuro e/ou impróprio.
Os copos menstruais, claro, são ainda uma miragem – até porque a maior parte das meninas e mulheres de zonas mais carenciadas não têm acesso à eletricidade, gás e água para os ferver e esterilizar após a sua utilização, nem tão pouco se podem “dar ao luxo” de gastar os recursos financeiros que servem para alimentar a sua família, em algo para a sua própria higiene menstrual.
A vida aqui é difícil, os preços são praticamente os mesmos que em Portugal – se não, por vezes, mais altos – e o salário mínimo nacional vai desde os 117€ (setor privado) a 136€ (função pública) – e estamos em Cabo Verde, para muitos considerada “a Europa de África”.
Porém, muitas mulheres Cabo Verdianas contam com grandes desafios no que toca à sua privacidade e higiene, onde as condições básicas se tornam ainda mais importantes durante a fase menstrual, e muitas não têm acesso ao saneamento básico, por viverem nos bairros clandestinos da cidade, ou nas casas antigas das pequenas aldeias remotas no meio da Ilha de Santiago, onde a eletricidade é algo que às vezes também não vem.
Assim, “pormaiores” como um caixote do lixo, um lavatório para as mãos, trinco na porta de uma casa de banho pública ou papel higiénico suficiente, serão para muitas, pormenores vistos como um luxo.
Em face a este contexto, clara e naturalmente que a preocupação das mulheres não é, nem será, a harmonização da sua vida à volta do ciclo menstrual, a literacia do seu corpo e do fluxo hormonal, nem a educação sobre a fertilidade. Pelo que, falarmos de temas como ciclos anovulatórios, amenorréias e dismenorréias, ou ainda falarmos sobre hábitos e rotinas que possam melhorar os seus ciclos menstruais, parece-nos algo vindo de uma posição extremamente privilegiada. Assim como o é a realidade de condições como o SOP (Síndrome de Ovários Poliquisticos) ou Endometriose, que tantas e muitas mulheres sofrem sem saberem que o têm.
Mas, felizmente, existe esperança para Cabo Verde, cultivada por instituições nacionais que estão a combater o tabu existente à volta da menstruação, para que seja possível construir uma sociedade mais educada e com mais literacia sobre o corpo feminino, que é tão espetacular, e que todas as meninas e mulheres do mundo deveriam conhecer.
É o exemplo de campanhas de sensibilização como a iniciada pela Verdefam, que vem começar o diálogo à ilha de Santiago com o slogan “Período menstrual é normal!” (vê algumas das publicidades produzidas pela Agência Caboverdiana de Imagens (ACI) aqui e aqui), colocando assim a dignidade menstrual como um direito fundamental no mapa, ajudando a combater a pobreza menstrual que se sente na ilha-capital do país.
A educação é a ferramenta mais poderosa para uma sociedade em evolução, e a importância de manter a conversa viva sobre este tema contribui para uma consciencialização e normalização da menstruação, algo que deve ser celebrado como um sinal de vitalidade.
Cabo Verde foi um lembrete súbtil de que ainda há muito a ser feito, mas que existe esperança no começo deste diálogo, impulsionado por notáveis instituições e mulheres guerreiras, com tanta vontade de aprender mais sobre si mesmas e de ocupar o seu lugar no mundo.
*Quem é Bárbara Neves?
Nascida em Lisboa, sempre tive a paixão de viajar e o gosto pelo mundo da comunicação. Advogada, licenciada em Direito e pós-graduada nas áreas de direitos humanos e migração, após passar por várias experiências de voluntariado, por exemplo, em campos de refugiados, e exercer na área de Migração, decidi, aos 26 anos, deixar a advocacia e seguir o caminho da Educação e Dignidade Menstrual como um direito fundamental, estando atualmente a aprofundar conhecimentos na área da Saúde da Mulher. A comunicação através da escrita é, para mim, uma terapia e uma forma de demonstrarmos amor, através da expressão, partilha de conhecimentos, troca de ideias, e espaço para crescer.