Covid-19: como é importante ter um diário da quarentena

Escrever na Máquina © Pixabay

Em janeiro de 2021, a Covid-19 foi bater à porta de Paula e da família e isso pô-la a pensar em como é importante ter um diário da quarentena. Apesar de já estarmos cansados do tema é, sem dúvida, algo que vai ficar nos livros de História: como a pandemia mudou as nossas vidas, em todos os sentidos. Esta é a história desta família, que felizmente não contou com internamentos nem sintomas muito graves. Mas, como fica a família quando a mãe é a primeira a ficar doente? Com humor, alguma ironia e muito pragmatismo, esta foi a história da Paula AL*. Quais os sentimentos que despontam quando estamos fechadas, sozinhas, num quarto, e durante tantos dias? Este é um resumo do seu diário de quarentena.

Preâmbulo: é muito óbvio que o meu contexto familiar, a forma não-grave como a Covid-19 passou por aqui, todo o apoio a que pudemos recorrer durante um isolamento familiar, que acabou por se arrastar por quase 3 semanas – tudo isto me permite abordar um assunto sério e grave de ânimo mais leve e com a segurança do alívio. Fiquem bem! 

Covid 19 © Pixabay
Covid 19 © Pixabay – (Sigam os conselhos da DGS)

Por, Paula AL*

Sim, é sobre aquilo de que já estamos fartos, sim. Perdoem-me, mas tudo aconteceu cá em casa há tão pouco tempo, que quis aproveitar a memória fresca. Vamos a isso.

No dia 25 de janeiro, ao final da tarde, recebi a confirmação de que o SARS-COV-2 tinha sido detetado em mim. Disse ao meu marido, regressei ao quarto (onde já tinha dormido na noite anterior) e fechei a porta. De repente, ia ficar vários dias sozinha naquele quarto. 

Talvez se lembrem daquela semana de janeiro em que todos os boletins diários da DGS (Dirção-Geral de Saúde) anunciavam recordes de registos de novos casos, de internamentos e de óbitos. Foi o chamado “pico da chamada terceira vaga”, em Portugal. Foi nesse contexto que me enfiei no quarto para não infetar o resto da família e para vigiar todos os meus sintomas.

A espécie de lista que se segue calhou agora assim, mas poderá ser outra, se eu voltar a pensar nisto daqui a algum tempo.

  • ESQUECE LÁ ISSO, TUDO SE RESOLVE

Nos primeiros momentos, depois de fechar a porta do quarto sabendo que estava infetada, ocorreu-me que “devia” estar a ir para a cozinha e preparar o jantar. Já sabia o que ia ser. Não me passou pela cabeça ir, de facto, tratar do jantar, claro. Mandei uma mensagem a explicar o que tinha pensado fazer. 

Posso garantir que se eles tivessem decidido fazer outra coisa qualquer, eu não me importava. Embora sentisse um formigueiro interno, com um certo travo corrosivo, que me inquietava por não estar eu a preparar o jantar, quero acreditar que se tratou de um natural conflito interior pela rotina tão abruptamente interrompida.

Como é óbvio, nunca passei fome, nem sede. Percebi alguns nervos à flor da pele, do lado de lá da porta, mas aos poucos as novas rotinas começaram a engrenar. Do mesmo modo, o meu formigueiro foi desaparecendo.

Como o pai precisou mesmo de continuar a trabalhar em casa a 100%, em horário e em concentração, foram as filhas a garantir quase todos os mínimos (e muitos máximos!).

Com o meu computador, fui eu que fiz algumas encomendas de mercearia. Através de vídeo-chamadas fui dando algumas orientações. Mas a verdade é que passei oito dias sem pensar, nem saber sequer, qual ia ser a refeição seguinte. Foi a primeira vez que tal me aconteceu em 20 anos. 

Tenho de confessar, esta foi a melhor parte da minha quarentena (não fora estar com Covid-19).

Mais para o final, senti algum nervoso miudinho por não ter feito algumas das arrumações importantes que pretendia fazer durante as férias escolares. O meu isolamento tinha mesmo de calhar na altura em que estava decidida a concretizar vários projetos caseiros, caramba.

Depois, acabei por me render às evidências. Esquece lá isso, tudo se resolverá. Haja saúde.

Escrever à mão © Pixabay
Escrever à mão © Pixabay

  • ESCREVER UM DIÁRIO

Esta é a única recomendação que dou, com segurança, a qualquer pessoa que esteja obrigada a fazer uma quarentena mais rígida, entre quatro paredes: escrever um diário. Basta um caderno novo e uma caneta (e saber escrever e ter saúde suficiente). Parece ser uma coisa mesmo nossa, das mulheres, um diário. Mas será mesmo? Acho que não.

Eu trabalho, mas trabalho numa empresa familiar na área do turismo rural que, como se imagina, não está na época mais agitada – era janeiro e vivemos uma pandemia há quase um ano. Por isso, as minhas responsabilidades laborais não foram uma preocupação durante a minha quarentena. Ao menos isso… 

Quer dizer, estando uma pessoa mais desocupada, a frustração não existe? Existe. Dispensada do trabalho, dispensada das lides caseiras, senti-me bastante inútil. Frustrada, muito.

E, mais uma vez, uma comichão interna, uma impressão esquisita por estar ali separada deles, como se tivesse ido para fora, sem sair do sítio. 

Logo no primeiro dia, estreei um caderno com a cronologia dos acontecimentos que nos levaram a fazer o teste à Covid-19. Foi como começar o relatório do meu próprio rastreamento epidemiológico. A partir daí, ora de manhã, ora à tarde, ora ao deitar, lá me punha a escrever.  São só pequenos desabafos, descrições do estado do tempo, registos das pessoas com quem falei, estão lá colados os recados que as filhotas passaram por debaixo da porta. Enfim, foi o diário de uma quarentena, mesmo.

Quando começava a escrever, tinha a certeza de que ninguém me ia interromper – coisa rara, quando a casa está cheia. Enquanto escrevia, o tempo voava, mas parecia que o agarrava para dentro do caderno. Acabou por ser dos meus passatempos preferidos, nesses dias. Talvez o tenha abraçado como uma tarefa essencial, uma aproximação a uma responsabilidade laboral.

Também tentei ler, livros mesmo, mas não consegui – a minha concentração distraía-se em pensamentos cíclicos. Mas tinha o diário e todo o mini ritual de estar com o caderno, com a caneta, fixada no papel, a organizar as minhas próprias ideias em frases simples mas com sentido… Foi ótimo. 

  • DESLIGAR. MAS NÃO DESLIGAR.

Já é bem conhecida a recomendação para não nos deixarmos assoberbar pela avalanche de notícias e opiniões sobre a pandemia. Eu sabia que devia evitar estar muito tempo na internet. Ora, isso é mais fácil de dizer do que fazer, quando estamos sozinhas num quarto.

A verdade é que abusei mesmo do uso da internet – é o caminho mais fácil para a distração. Mas eu acho que é possível usá-la de forma positiva. Apostei no que não me perturbava, no que não me assustava. Procurei o que só me confortava, no que me fazia rir.

Das notícias, só lia “as gordas”. Televisão foi zero. 

Fui percorrendo os reels no Instagram, com preferência para os vídeos com cães. Também apanhei todas as recomendações de vídeos curtos com cães engraçados no YouTube. Aproveitei os algoritmos que me levavam a coisas fofas, comoventes ou cómicas. Tudo isto foi muito útil para não pensar demasiado em coisas muito sérias.

Outra vantagem: por vezes davam-me sono e rendia-me a pequenas sestas.

Por fim, as vídeo-chamadas. São fundamentais e existem também graças à internet.

E com quem fiz mais vídeo-chamadas? Com as filhas e o marido. Durante todas as refeições, nunca estive sozinha. Vi brincadeiras com a cadela. Dei dicas durante os cozinhados. Fui sabendo de novidades. Assisti ao arrumar da cozinha, enquanto me distraíam com conversas da treta ou danças do tiktok. Recebi muitos mimos graças às vídeo-chamadas.

Em suma, desligar sim, sempre que possível (nomeadamente para as sestas). Mas não desligar totalmente para não nos sentirmos tão sós.

Escrever um diário © Pixabay
Escrever um diário © Pixabay

  • AS PEQUENAS COISAS

Numa quarentena, no fundo, espera-se. O tempo arrasta-se. A minha disposição não foi sempre famosa. Mesmo assim, lá fui fazendo o eterno exercício que toda a gente faz no dia-a-dia – encontrar algum equilíbrio entre o descanso e a ocupação, entre ficar só com os meus pensamentos e procurar o convívio possível.

Dei por mim a tratar de pequenas tarefas com um vagar, uma ausência de pressa que foi inesperada. Para mim, foi uma sensação nova, acho. 

Não me posso gabar de ser daquelas mães e mulheres muito capazes de malabarismos de muti-tarefas do dia-a-dia. Ou melhor, claro que faço algumas proezas, mas o que destaco dessas situações é que vou fazendo, vou resolvendo, vou decidindo, passa um dia, dorme-se uma noite e lá vamos nós – “mais uma volta, mais uma viagem”. Mesmo em dias normais, vá, parece haver sempre uma pressa latente em tudo o que se faz.

Durante a quarentena, aconteceu esse novo sentimento de viver as pequenas coisas de um dia-a-dia muito simples, de uma forma bastante intensa, mas calma e calmante.

Por exemplo (ler muito devagar, pois foi assim que fiz tudo isto): fazer a cama, dobrar o pijama, preparar a escrivaninha para comer as refeições, levantar a louça e empilhá-la para depois ir lavá-la, preparar o mesmo sítio para estar ao computador, tomar o banho, pôr o creme na cara, manter a roupa arrumada, o sítio do termómetro, dos lenços de papel e dos comprimidos, o sítio dos cadernos e canetas.

Tudo pequenas coisas que ganharam uma enorme importância. Ok, sim, era porque não tinha mesmo mais NADA que fazer. 

  • É DIFÍCIL ESQUECER QUE ESTAMOS DOENTES – AINDA BEM

Logo depois do teste, segue-se contacto do Centro de Saúde, da Saúde Pública, enviam um atestado médico e declarações de isolamento para a família. Fui questionada, recebi instruções muito específicas, fui alertada para ficar atenta a determinados sintomas. 

Como referi antes, tudo isto acontecia num período grave do estado da pandemia em Portugal. Eu gosto de ler jornais e estou atenta à atualidade. Foi impossível ignorar o conhecimento que já tinha acumulado ao longo de tantos meses anteriores. 

Fiquei hiper-vigilante ao que sentia e a ansiedade esteve bem presente, está bom de ver. A verdade é que ficamos muito entregues a nós próprios e nem sempre é fácil distinguir o que se deve valorizar ou desvalorizar, o que será sintoma ou o que é só impressão. 

Comecei a minha quarentena já a sentir-me doente. A tal hiper-vigilância é muito difícil de controlar. Senti a minha energia normal a descer, fiquei cansada com a tosse teimosa, senti-me desconfortável com uma espécie de estado febril sem nunca ter febre e senti a inquietante sensação de esforço respiratório sem que estivesse a fazer um esforço físico correspondente.

Diria que, mesmo que me sentisse bastante melhor, é importante não esquecer que estamos doentes e somos mesmo um potencial meio de contágio.

Neste ambiente, sozinha num quarto, os registos das horas a que tirava a febre ou da toma do paracetamol eram formas de me organizar para os telefonemas que recebia do Centro de Saúde. Fiz tudo para ser uma doente cooperante, e acho que me portei muito bem.

Disto isto, podia voltar ao princípio – o que me acalmou a ansiedade e me animou o espírito foi tudo o que enumerei antes: 

– as coisas foram se resolvendo lá fora, apesar da minha “ausência”;

– escrever o diário da quarentena, valeu mesmo a pena;

– usei muito a internet, mas com critério; 

– entre a doença e a convalescença, descansar e tentar saborear a ausência de pressa.

Quem escreveu este texto?

*Paula Almeida. Nasci no bonito mês de abril, no lindo ano de 1976. Tenho duas filhas fantásticas, que já estão muito crescidas. O marido é um ótimo marido já há 20 anos. Na Universidade estudei Comunicação Social, mais tarde pós-graduei em Arquivística. Já há 8 anos, trabalho em Turismo Rural. Gosto de informação. Ouço podcasts, atualizo-me com jornais, adoro documentários, tento ler o mais possível (nos últimos anos, mais biografias). Vivo no campo, mas o Porto é o meu-lugar. Não gosto de cozinhar. Gosto muito de rir. Gosto de viajar. Já tive Covid-19.

Cenário de Quarentena - Covid 19 © PAL
Cenário de Quarentena – Covid 19 Foto © PAL