As Murshidat em Marrocos, Ana Rita Tecedeiro

Ana Rita Tecedeiro em Marrocos

Nas “Conversas do Confinamento”* foi abordada o estudo/investigação “Estado, Religião e as Mulheres: O caso das Murshidat em Rabat”, uma tese de Mestrado da autoria de Ana Rita Tecedeiro**. Com visita a RabatMarrocos, a investigadora destaca “o papel que foi concedido às murshidat, na luta contra o terrorismo e na luta por um Islão moderado”. Mas, quem são as murshidat? Conhece um pouco mais deste trabalho, mais abaixo.

*O que são as “Conversas do Confinamento”? Perante um novo confinamento geral, em Portugal, iniciado a 15 de janeiro de 2021, decidi começar uma série de entrevistas, de forma a dar a conhecer o trabalho de muitas mulheres, em várias áreas, mas sobretudo no trabalho em prol do outro, na saúde, sexualidade, no desenvolvimento pessoal, no auto-conhecimento e nas viagens, claro!
Entrevistas que trouxessem conhecimento e inspiração durante todo o confinamento.

Essas entrevistas foram o primeiro passo para criar o site Mulheres em Viagem, que é um site irmão do Viaje Comigo.

Mulheres em Viagem… porque a vida é uma viagem!

E quem sou eu? Sou a Susana Ribeiro, jornalista, comunicadora, viajante e fundadora do site de viagens Viaje Comigo e do Mulheres em Viagem. E a entrevistadora das “Conversas do Confinamento”.

Sejam bem-vind@s ao Mulheres em Viagem.pt – uma Comunidade de e para Mulheres Extraordinárias… como Tu!

**Quem é Ana Rita Tecedeiro: nasci em 1987 na cidade de Setúbal. Sou filha de pais alentejanos. Cedo ganhei o gosto pelas outras culturas. Licenciei-me em Relações Internacionais e mais tarde tirei mestrado em Antropologia na mesma faculdade, o ISCSP, a minha segunda casa. Tive várias experiências profissionais, desde um estágio na Marinha, trabalhei em bancos, também passei pela área do Marketing e mais recentemente trabalho em Risco e Fraude na área de Gaming. Sou uma apaixonada por viagens e por conhecer “o outro”. Já tive a oportunidade de viajar para sítios com os quais sonhava, desde que era miúda, e interesso-me pela melhoria das condições das mulheres a nível global, tema muito em foco na minha tese de mestrado – que me possibilitou fazer trabalho de campo em Marrocos.

“Estado, Religião e as Mulheres: O caso das Murshidat em Rabat” 

Trabalho completo aqui (reprodução do resumo e introdução com autorização da autora do estudo).

RESUMO

“A presente proposta de investigação, enquadra-se no âmbito das políticas e narrativas reformistas associadas ao Islão, mais precisamente, do modo como o Estado concebe a necessidade de reforma religiosa, o papel que é reservado às mulheres nesse processo e a importância da educação na contenção de movimentos radicais islâmicos e da própria emancipação da mulher. Para tal, tomo como objeto de estudo o caso de Marrocos e as murshidat.

Analisa-se o tema referente à questão das murshidat segundo o paradigma crítico, através de uma perspetiva desconstrutora de um padrão dominante no que respeita aos líderes espirituais do Islão e também da influência do Estado na reforma religiosa em Marrocos. Para tal, recorro à metodologia qualitativa, designadamente, a utilização de entrevistas, à etnografia virtual/digital que são complementadas com a análise documental e pesquisa bibliográfica.

Coloco o Estado no centro desta análise, demarcando-se o trabalho da abordagem já amplamente explorada, do estudo da mulher islâmica a partir de um paradigma de submissão e até do ativismo das mulheres islâmicas, focando a sua própria agência e a importância da atuação das ONGs feministas no processo de emancipação das mulheres islâmicas. Privilegio o papel que foi concedido às murshidat, na luta contra o terrorismo e na luta por um Islão moderado, uma narrativa de certa forma singular, do Estado marroquino e do Rei Mohamed VI que alterou um padrão dominante no que respeita aos líderes espirituais marroquinos, construindo uma nova narrativa sobre o Islão e, paralelamente, dá-se atenção à relação da prática religiosa e do género, pretendendo-se assim perceber a sua relação com a inclusão das mulheres nos assuntos religiosos.

Entende-se assim que o Islão é uma componente essencial da identidade marroquina e consequentemente das mulheres, que com as particularidades religiosas e culturais, têm a sua própria forma de posicionamento na sociedade marroquina”.

Pôr do sol no deserto -Marrocos © Viaje Comigo
Pôr do sol no deserto -Marrocos © Viaje Comigo

INTRODUÇÃO

“O tema da presente dissertação situa-se na interseção entre o Estado, a religião e as mulheres marroquinas, procurando perceber como, o caso específico das murshidat, nos per- mite pensar o papel das mulheres na sociedade marroquina e o seu lugar na agenda política do Estado.

Porquê as mulheres e porquê Marrocos? Marrocos é muitas vezes referido pelas orga- nizações internacionais1 como um exemplo de moderação e um país progressista no que se refere às atitudes e leis relacionadas com as mulheres no mundo muçulmano. Não obstante, diversas leis marroquinas, costumes e tradições, contêm profundas diferenças de género, por exemplo, o Código Penal Marroquino criminaliza as relações sexuais fora do casamento, mas a lei não criminaliza o seu parceiro homem2.

Acrescem na lei marroquina omissões no que se refere à proteção das mulheres, principalmente em relação às mães solteiras, raparigas que desempenham trabalhos domésticos, ou em relação à violência doméstica. (Edwards, 2012)

Surpreendentemente, num momento particularmente difícil para a sociedade marro- quina, as mulheres vieram a merecer, do Estado, um protagonismo que até então não lhes tida sido concedido: integraram um programa inovador de combate ao terrorismo islâmico, implementado a partir do ano de 2006, na sequência dos ataques terroristas em Casablanca. Esse programa, cujo objetivo foi de reeducar a população e tornar os cidadãos mais alerta para as questões sociais, passou pela inclusão das mulheres num domínio onde, embora inse- ridas, sempre existiram à parte: a religião. Impulsionado pelo aumento dos movimentos extremistas e forte pressão a partir do exterior, o Estado marroquino desenvolveu num pro- grama inovador, que reserva para algumas mulheres o papel de guias islâmicas, atividade que até então só estava a cargo dos homens.

O surgimento das murshidat, em Marrocos, é um bom exemplo para pensar questões como o posicionamento das mulheres na sociedade islâmica, mas, também, da luta contra o terrorismo e a luta por um Islão moderado, um objetivo de certa forma singular, do Estado marroquino e do Rei Mohammed VI.

Desta forma, tento perceber como as mulheres marroquinas passaram a poder participar ativamente na esfera religiosa, em que contexto se deu esta mudança e a um nível mais político, como é que o Estado tenta reconfigurar-se integrando as mulheres numa das suas narrativas privilegiadas, bem como os motivos que o levaram recentemente a actuar sobre esta matéria.

Vale a pena referir que o Estado não é necessariamente o único propulsor da ação feminina já que, previamente à ação do Estado, é possível identificar a agência feminina no sentido do autoempoderamento. Movimentos feministas como a L’Union de L ́action Féminine que data de 1983, quando um pequeno grupo de mulheres se juntou e produziu o primeiro periódico feminista do mundo árabe, com o objetivo de uma reforma que conduzisse à igualdade entre homens e mulheres, ou da Association Démocratique des Femmes du Maroc em Rabat, ainda hoje ativa, com o objetivo de criação de redes, de capacitação e de lobbying, são exemplos que contrariam a suposição ocidental, que Lila Abbu-Lughod (2013) se tem esforçado por desconstruir, de total dependência e falta de autonomia da mulher muçulmana. Este empoderamento das mulheres muçulmanas funciona em sociedades patriarcais, como é o caso, como uma forma de resistência ao Estado. As murshidat, ao contrário surgem para integrar a narrativa do Estado na luta contra o terrorismo.

Após os atentados terroristas de 2003 em Casablanca, desencadeados por movimen- tos radicais no próprio território marroquino, as mulheres marroquinas tornaram-se partici- pantes da reforma, constituíram um ativo político de que o Estado lançou mão, tornando-as parte da política de luta contra o radicalismo e terrorismo. São parte de uma reforma religiosa que então teve início e que lhes permitiu não só assegurarem alguns dos seus direitos, como o divórcio sem consentimento mútuo, o casamento permitido apenas a partir dos 18 anos, entre outros, mas também à participação feminina ativa e de liderança na religião e na vida social e cultural3. O Estado marroquino procurou dar resposta a dois problemas com uma solução, a criação das murshidat, aproveitando ainda para divulgar a sua imagem de Estado tolerante e respeitador dos Direitos Humanos na cena internacional. Apesar de o Islão ser a religião oficial em diversos estados árabes, entre os quais se encontra Marrocos, a regulação da vida religiosa pelo Estado é muito diferenciada nos diversos países. Não é possível compa- rar por exemplo o caso da Arábia Saudita com Marrocos e outros países magrebinos, considerados menos conservadores.

Partindo da importância da questão das políticas de identidade de género e da mulher como guia espiritual, na forma como ensina o Islão e a sua relação com os radicalismos religiosos, é importante compreender de que forma na sociedade marroquina se têm vindo a alterar as narrativas sobre as identidades de género no que se refere aos ensinamentos do Islão, com a formação das murshidat e a função que estas desempenham.

Inscrevo assim este trabalho numa perpectiva antropológica que se interessa pelo envolvimento dos vários atores e organizações sociais, e principalmente na vida quotidiana, em vários tipos de micropolítica e na intercepção destes múltiplos níveis onde o campo da política é construído, na prática, de forma a analisar os estereótipos sobre o Islão e os muçulmanos, onde muitos questionaram a compatibilidade do Islão e dos muçulmanos com a modernidade e em contrapartida, outros tentam provar que o Islão poderia de fato ser “moderno” e compatível com a democracia (Osella e Soares, 2010) .

“Na verdade, nunca estamos na medida certa, nunca somos tolerantes o suficiente para com o outro, ou caímos no extremo oposto e negligenciamos os nossos direitos inalienáveis, resultantes da nossa evolução enquanto ser humano. São muitas as causas que não perten- cem nem a homens nem a mulheres, nem a judeus ou muçulmanos, nem a homossexuais ou heterossexuais, nem a ricos ou pobres, mas a todos ao mesmo tempo e que têm como objectivo o bem comum. Como evoluímos num mundo regido pela globalização que por sua vez, é marcada por uma interdependência crescente, o encontro e o convívio entre os povos e as diferentes culturas são inevitáveis e necessários (Cunha, 2014; Pignatelli, 2010; Moreira, 2007)”.

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